O “efeito Orloff” se tornou, nos anos 1990, um chavão para comparar Brasil e Argentina. Caso alguém não lembre ou não tenha idade para lembrar, a comparação se inspira numa propaganda de vodca dos anos 1980. Nela, o protagonista acorda de ressaca porque tomou vodca ruim. “Eu sou você, amanhã”, diz.
Na comparação, a ressaca atingia a economia brasileira depois da argentina. “O Brasil é a Argentina amanhã”, dizia-se. Nossos vizinhos foram os primeiros a viver a hiperinflação, os primeiros a passar por planos de estabilização que deram errado. Para saber o futuro da economia brasileira, bastava olhar a Argentina e citar o tal “efeito Orloff”.
Valeu enquanto o investidor internacional fazia apostas coordenadas no Mercosul, na América Latina ou nos países emergentes. Quando o Brasil despontou como país emergente promissor, passou a ser visto individualmente. Começou uma nova era, o “descolamento”. O “efeito Orloff” caducou.
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Uma dúvida cerca a visita do presidente Jair Bolsonaro hoje à Argentina: estaria o “efeito Orloff” de volta? Bolsonaro viverá nos próximos anos uma dinâmica semelhante à do presidente Maurício Macri, eleito em 2015 com o programa de desfazer a herança do kirchenrismo, mas prestes a perder as eleições de outubro para os rivais?
Como Macri, Bolsonaro foi eleito sob o espectro do lulismo. Também adotou um programa ambicioso de reformas econômicas, cujo principal objetivo é conter a expansão da dívida pública e evitar o retorno da inflação. Na Argentina, tal programa deu errado. A economia encolheu 1,8% em 2016 e, depois de crescer 2% em 2017, voltou a entrar em contração no ano passado. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu 2,5% em 2018. A expectativa para 2019 é de queda superior a 1%.
Diante de reformas insuficientes para conter a dívida pública – entre elas mudanças na Previdência –, a inflação disparou. Fechou 2018 em 48% e, nos últimos 12 meses, gira em torno de 55%. A crise no Brasil reduziu o mercado para os produtos argentinos. A pobreza tem aumentado. A popularidade de Macri desabou.
O terreno se revelou fértil para o retorno do kirchnerismo. Enfrentando denúncias de corrupção, protegida apenas pelo foro especial garantido aos senadores, Cristina Kirchner adotou uma estratégia astuta: em vez de lançar sua candidatura à Presidência, decidiu sair como vice na chapa encabeçada por Alberto Fernández.
Ex-chefe de gabinete de Néstor Kirchner, Fernández é visto como um moderado capaz de atrair votos no centro do espectro político. Participou do governo Carlos Menem e pertenceu ao partido do ex-ministro da Economia Domingo Cavallo. Em 2008, tornou-se um crítico das políticas do casal Kirchner. Sua candidatura representa um desafio maior a Macri do que representar o papel de “anti-Kirchner” num cenário polarizado.
A manobra de Cristina deu certo para os peronistas. A chapa Fernández-Kirchner é franca favorita a derrotar Macri em outubro. A valer o “efeito Orloff”, ela equivaleria, no Brasil, ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sair candidato a vice de um petista moderado, como Jaques Wagner ou Fernando Haddad.
Aqui tal manobra seria inviável, pois a lei veta qualquer candidatura de Lula, condenado em segunda instância na Justiça. Por isso mesmo, o cenário em que Bolsonaro repete os passos de Macri e se vê obrigado a devolver o governo ao PT no final do mandato não passa, por enquanto, de pura especulação. Tudo dependerá do êxito das reformas econômicas promovidas pelo ministro Paulo Guedes.
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Elas estão sujeitas, porém, a dois riscos políticos também presentes na Argentina. O primeiro é repetirem o desempenho fraco do programa levado a cabo por Macri e pelo ministro argentino Nicolas Dujovne. É serem insuficientes para tirar o país do buraco e resgatar a credibilidade internacional. É não serem, aos olhos do mercado, “liberais o bastante” para recuperar investimentos, ressuscitar o crescimento robusto e resgatar o nível de emprego.
O segundo risco político, já ensaiado aqui, é o oposto: as reformas serem vistas como “liberais demais” e despertarem a demagogia oportunista da oposição. É, diante da frustração econômica, elas fornecerem o pretexto ideal ao discurso de que nos governos petistas a situação era melhor.
A realização de ambos os riscos representará, como na Argentina, o retorno da inflação e resultará na volta provável ao poder da política econômica que resultou na bancarrota das contas públicas. Será a ressurreição do “efeito Orloff”. O mero fato de que tal possibilidade exista é, em si, péssimo.
Fonte: “G1”, 06/06/2019