Temos nos confrontado com esse axioma moral ou ético quando o Brasil desaba e descobrimos que assassinos são mais eficientes do que a polícia e que os “de cima” nos roubam em nome dos “de baixo”, cujas vidas seus governos vilmente traíram. Nossos conflitos não são resolvidos. Pelo contrário, são pautados por denúncias e indecisões jurídicas. Vivemos tempos nos quais os “de cima” têm sido modelos de vergonha, hipocrisia, traição dos ideais socialistas e de valores republicanos.
Tempos de roubalheira como projeto político, nos quais ministros, senadores, presidentes de partidos do povo, diretores de estatais e outros “altos” funcionários públicos se locupletaram debaixo de domínio, direção ou influência de um ex-presidente e de um ex-governador — julgados e condenados, respectivamente, a 12 anos e a um século de prisão!
Nossa impotência diante da criminalidade constitutiva da nossa alma política é uma parte crítica desse cataclismo moral. De fato, como uma Justiça destinada aos de baixo vai dar o exemplo enjaulando os de cima?
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Nossas carteiras de identidade ideológicas foram batidas. E, por isso, quanto mais tontos com os labirintos legais, mais invocamos nosso labirinto legal. E aí surge um outro paradoxo: pois a lei é clara, mas o problema jaz na sua complexa aplicação — e, muito especialmente, em quem ela se aplica pois, com a devida vênia, praticamente toda a elite política tem o “rabo preso”, num sistema onde “fazer política” é enredar-se.
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O exemplo vem de cima, mas e se o crime é cometido pelos que estão em cima?
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Quando menino, aprendi que deveria ser sincero e dizer a verdade. Mentir levava à hipocrisia, essa palavra complicada que é, porém, parte constitutiva do universo humano. Sem mentira, hipocrisia e pusilanimidade, sistemas políticos inteiros se desmanchariam do mesmo modo que a verdade dita cara a cara transforma-se em “franqueza rude”, como dizia contraditoriamente minha mãe. Recebi lições de sinceridade tentando discernir quando o verossímil — vejam a rotação lógica — não seria rude.
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— Você gostou do bolo?
— O que acha do meu penteado?
— Como estou?
— Devo dizer o que realmente penso?
— De que lado fico quando o meu cargo (que é público) entra em conflito com o meu interesse de enriquecer a mim, ao meu partido e aos meus?
Cada uma dessas perguntas explicitam respostas diversas.
Em relação à primeira, mamãe, ela própria, me orientou enfaticamente para sempre dizer um sonoro “sim”, mesmo que o bolo fosse uma merda. Não tive dificuldade em seguir essa exemplo, embora tivesse problemas quando a mãe do Valtinho repetia a fatia do bolo e eu pagava pela minha polida insinceridade sendo “bem-educado”.
Em matéria de comida, somos sempre honestamente insinceros. O mesmo ocorre em matéria de religião e de aparência — donde o nosso preconceito reprimido, o qual só se liberta em surtos ou desabafos. Quanto mais colocamos o reprimido dentro da cartilha do “medalhão” talhado por Machado de Assis, mais neurótico é o surto…
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Mas, apesar desta ambiguidade do mentir falando a verdade e do jamais dizer o que se pensa, somos sinceros.
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“Catarina parece uma índia!”, exclamei na mesa de almoço, depois de apreciar, com precoce curiosidade etnológica, uma amiga da família.
Ao sairmos da mesa, papai e mamãe, visivelmente perturbados, ralharam comigo no corredor, na única admoestação que recebi em conjunto em toda a minha vida. Jamais, repetiam eles, transtornados — esses amazoneses-brasileiros sem preconceitos —, chame alguém de “índio”. Principalmente se esse alguém for amigo e, como era o caso, for parecido com um índio, completei, revelando a ironia da situação.
Puseram-me de castigo até que, mais velho, fui aprender que no Brasil a gente, na dúvida, deveria mentir. Era um direito no nosso Direito…
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Como ser sincero se a insinceridade é a verdade, sobretudo no mundo público, no qual a melhor decisão é decidir não decidir. Numa interpretação que fiz do personagem Dona Flor — essa heroína de Jorge Amado, tão onipresente na nossa literatura quanto a Capitu de Machado de Assis —, assinalei que ela preferiu escolher não escolher entre Vadinho — o marido morto que lhe provocava como espírito — e o Doutor Teodoro, o regular farmacêutico que jamais praticara uma malandragem. É que ela precisava da ambiguidade malandra de Vadinho para contrabalançar a sensatez sem fantasia do farmacêutico. Entre mortificar-se na cruz do certo ou do errado, da disciplina ou do excesso; entre matar-se como fazem as heroínas do romance europeu tradicional, a carioca Capitu — que viveu num Rio de Janeiro sem internet, sem telefones celulares e sem Sérgio Cabral filho — preferiu ficar com os dois!
Tal como a nossa ordem jurídica, cujo lado luso, hoje — espero — em revisão revolucionária, prevê recursos, infinitas instâncias e prescrições. Enfim, uma cultura ou ontologia do perdão incomparável, embora misericordioso, com um universo político igualitário e republicano.
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Tudo isso revela como o plano pessoal canibaliza a esfera impessoal ou pública, reiterando uma matriz hierárquica. Porque é nas aristocracias que o “exemplo vem de cima”. Nas democracias, eis o susto, ele vem de todos os lados. Sobretudo da opinião pública: ou seja “de baixo”! De “qualquer um”…
Fonte: “O Globo”, 28/03/2018