Não entendi direito o que Luciano Huck quis dizer na manchete do Estadão de domingo ao alegar que, nem bem assumindo, Bolsonaro não tem projeto de país. Disse, contudo, ao mesmo tempo, que se deve dar um voto de confiança a ele, tendo elogiado a escolha de Paulo Guedes com sua conhecida visão liberal.
Huck (e quem pensa como ele) deve entender que o novo governo representa uma forte guinada liberal, depois de 30 anos de predomínio da social democracia e do petismo que, a partir de um certo momento na fase pós “constituição cidadã”, se alternaram no poder, e produziram o que está aí: estagnação e mazelas. Se a verdadeira visão liberal vai se materializar mesmo, ou se Bolsonaro vai dar certo, é outra estória. Acho que a grande maioria espera que sim, talvez acreditando que esse é o melhor caminho para ver o país crescer a taxas elevadas, depois de tantos anos de estagnação. Mais do que qualquer outra coisa, a população quer emprego.
A partir daí talvez seja mais útil repassar as grandes questões à frente, começando pelo que, consensualmente, é o problema número 1. O que fazer para resolver os desequilíbrios fiscais gigantescos tanto da União quanto dos estados (e, numa menor escala, dos municípios)? Nove entre 10 analistas vão dizer que se trata de combater o excesso de “previdência”.
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Vou mais longe para incluir no diagnóstico o excesso de “assistência”, como demonstram os números dos gastos da União. Será que quando se diz, como Huck, que Bolsonaro não vai dar prioridade a um projeto de redução de desigualdade social, está-se pedindo que aumentem ainda mais os gastos assistenciais? Se for, o problema do deficit nunca terá solução.
O Brasil talvez tenha, hoje, o maior programa de transferências de dinheiro a pessoas do mundo. Calculo que contemple mais de metade de nossa população. Refiro-me aos benefícios assistenciais e subsidiados do Orçamento da União, que, com base nos números de 2017, foi literalmente tomado por eles e pelos “benefícios previdenciários”, esses com baixo teor contributivo individual, abocanhando, ao todo, a chocante fatia de 63,7% da pizza do gasto não financeiro federal. Pasmem: em 1987, 30 anos antes, esses itens somavam apenas 22,3% do total. Agora, a preços de 2017, terão aumentado praticamente três vezes, passando de R$ 290,1 bilhões para 828,7 bilhões. Não por outro motivo, em 1987, o investimento era de 16% do total. No ano passado, foi de apenas 4% do total, quatro vezes menor.
A situação é tão grave, que mesmo que zerássemos os gastos discricionários não conseguiríamos eliminar o atual deficit primário que é gerado na União. Ou seja, não adianta tentar soluções superficiais como se tem feito nos últimos anos. Uma profunda revisão dos benefícios assistenciais deve ser tentada, pois se sabe que há muito desperdício.
Só isso economizará uma montanha de dinheiro. No mais, a única saída é reconhecer a dívida previdenciária como algo que tem de ser pago e reorganizar toda a previdência contributiva (servidores e parte do INSS) sob a forma de fundos de pensão equacionados atuarialmente à parte do Orçamento público e ao longo, digamos, dos próximos 70 anos, cobrando uma contribuição adicional dos beneficiários, a exemplo do que se faz nos fundos de grandes estatais.
Para o saldamento desses fundos, contribuirão decisivamente o aporte de ativos e outros recebíveis, além do efeito de reformas paramétricas como a que o novo governo já está concebendo, mas é ilusão acreditar, como muitos, que, diante da gravidade da situação atual, basta aprovar uma tal reforma, já que seus efeitos, se tudo der certo, só ocorrerão a longo prazo. Trata-se de adotar um enfoque de estoques e não de fluxos.
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Primeiro, pela dimensão do atual problema, já salientado. Depois, porque é preciso ter algo (ou seja, o equacionamento do problema previdenciário) a negociar com as partes envolvidas, sejam elas representantes dos segurados do INSS, sejam elas membros da corporação talvez mais poderosa do país, a dos funcionários públicos, hoje, cientes de que seu regime está quebrado. (Vejam, a propósito, os números que divulguei na manchete do Globo do último domingo). A não ser que estivéssemos em algo parecido com uma ditadura. Caso contrário, nenhuma reforma ocorrerá, a exemplo da última do governo Temer que, além de defeituosa, só colheu reações do tipo: mas logo agora vão fazer mais uma vez os velhinhos pagarem a conta?
Já o espaço adicional que será aberto no Orçamento federal por esse saldamento seria da ordem de R$ 189,2 bilhões anuais, com base nas projeções oficiais para 2019, resultando da soma da parcela de R$ 91,1 bilhões relativa ao deficit dos benefícios urbanos do RGPS com a de R$ 98,1 bilhões relativa ao deficit do RPPS. Esse montante teria de ser obrigatoriamente direcionado para investimento e aquisição de títulos públicos federais em mercado, acionando-se a ignição do crescimento do PIB. O mesmo saldamento (com geração de novos recursos) se aplicaria, mutatis mutandis, ao caso dos estados e municípios.
Fonte: “Correio Braziliense”, 11/12/2018