No momento em que temos exemplos pelo mundo de impasses entre Executivo e Legislativo, como os casos dos Estados Unidos com o muro da discórdia na fronteira do México, ou a Inglaterra com o Brexit, é bom revisitar a palestra de Antonin Scalia, um dos mais conservadores e respeitados juízes da Corte Suprema dos Estados Unidos, morto há dois anos, sobre a importância da separação dos Poderes.
No Brasil também estamos às voltas com a disputa na definição dos presidentes da Câmara e do Senado, como sempre desejosos de que o Legislativo tenha à frente algum político que apóie as reformas que o Executivo pretende enviar ao Congresso, especialmente a da Previdência. Pois Scalia considerava que a força da democracia americana está justamente na contraposição do Legislativo e o Executivo, a política do “check and balances”, peso e contrapeso.
Scalia achava que quando havia, como agora, um shut down do governo devido a um impasse, os cidadãos deviam vibrar, pois era a democracia agindo. Nessa palestra no Congresso, Scalia contou que quando se reunia com estudantes de Direito, perguntava sempre: Qual a razão de a América ser um país tão livre? O que existe em nossa Constituição que nos torna o que somos?
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A resposta mais frequente, ele garantiu, será “liberdade de expressão” ou “liberdade de imprensa”. “E eu lhes digo: se vocês acham que a Carta de Direitos é o que nos diferencia, vocês estão malucos. Qualquer República de Bananas tem uma Carta de Direitos. Todo ditador tem”.
Ele citou, com ironia, a Carta de Direitos da antiga União Soviética, “que era até melhor que a nossa. Estava dito lá literalmente que qualquer um que for apanhado tentando restringir as liberdades individuais será processado por isso”. Mas eram apenas palavras no papel, ressaltou Scalia, porque a Constituição da União Soviética não evitava a centralização do poder em uma pessoa ou em um partido. “Eram garantias de papel”.
O verdadeiro segredo é a estrutura de nosso governo, afirmava. Nessa estrutura ele destacava, além do óbvio sistema judiciário independente, o sistema bicameral no Legislativo “ que poucos países no mundo têm. Inglaterra tem a Câmara dos Lordes, mas ela não tem poder substancial, só pode fazer com que a Câmara dos Comuns vote uma segunda vez. França e Itália têm um Senado, mas são honoríficos. Poucos países têm duas câmaras legislativas igualmente poderosas” ressaltou Scalia.
Nos países parlamentaristas, ele definiu o Poder Executivo como “uma criatura do Legislativo”, dizendo que não tentam separar os poderes. “Então não há discordâncias entre Executivo e Legislativo, como vocês têm com o presidente. Se houver discordância, eles simplesmente tiram o primeiro-ministro e colocam outro no lugar”.
Scalia passou a ironizar a postura dos europeus diante da separação de poderes: “Os europeus olham para o nosso sistema e dizem: um projeto passa em uma Casa e não passa na outra, e mesmo que passe nas duas, o presidente tem poder de veto. Isso gera um impasse”.
Pois Scalia achava que os pais fundadores dos estados Unidos diriam que era isso mesmo que queriam, que esses poderes entrassem em contradição. Ele classificou o gridlock (impasse), como o que atinge o governo dos Estados Unidos no momento, com a administração pública praticamente parada porque o Legislativo se recusa a dar verba para a construção do muro na fronteira do México, como a maior proteção das minorias.
“No dia em que os americanos valorizarem o impasse, compreenderão porque nosso sistema de governo é tão bom”.
Transpondo esses comentários para o nosso caso, temos um sistema bicameral que funciona como equilíbrio da democracia, com o Legislativo podendo barrar iniciativas do Executivo ou cada uma das Casas com poder de obstruir os trabalhos, como proteção das minorias.
Nem Senado nem Câmara são poderes honoríficos, e cada um entre si pode interferir na decisão do outro. Só o que precisamos é que as ações parlamentares obedeçam a uma lógica que não seja de troca de favores, e até mesmo a oposição, diante da evidência de que elas são imprescindíveis, deveria participar dos debates sobre as reformas com propostas alternativas às do governo, e não atuar na base do quanto pior, melhor.
Fonte: “O Globo”, 27/01/2019