“Aos amigos, tudo; aos indiferentes, a lei; aos inimigos, a lei e seus regulamentos”. Meu pai gostava dessa citação para alertar contra brigar com a burocracia: são tantas leis, decretos, portarias, acórdãos, instruções normativas, regulamentos, que quem os aplica tem grande latitude para facilitar ou infernizar a vida de quem a ela recorre.
Não deixa de ser paradoxal: ao mesmo tempo em que se afogam em um oceano de regras, os brasileiros têm que navegar em uma realidade com regras sempre fluidas e situações muitas vezes resolvidas caso a caso.
Essa realidade traz graves prejuízos à economia. Por exemplo, ela força as empresas a gastar significativos recursos para conhecer e cumprir todas as regras. Fazer negócios vira um pesadelo: basta ver os resultados do último “Doing Business”, onde o Brasil aparece entre os últimos colocados em itens como “abrir um negócio”, “pagar impostos” e “conseguir uma licença de construção”.
A corrupção e o tráfico de influência são outros resultados dessa realidade. Essas são formas de se buscar “amizade” no local certo: junto a quem vende “facilidades”, contrata obras e serviços, fiscaliza, dá empréstimos, redige medidas provisórias etc. A corrupção prospera não só porque quem decide tem muita latitude, mas porque a ausência de regras claras dificulta julgar se a decisão foi tomada de boa ou má fé.
Se facilita a corrupção, essa realidade dificulta a vida do gestor honesto. Os gestores públicos têm que tomar decisões com base na interpretação das regras, mas essa interpretação nem sempre é a mesma dos órgãos de controle. Com isso, o gestor está sujeito a penas sérias, mesmo quando age com boas intenções. Isso incentiva o imobilismo, a não decisão, problema que está se alastrando.
Essa flexibilidade interpretativa também eleva o risco de investir e operar no Brasil, o que reduz o investimento, o emprego e a produção. Atividades reguladas e/ou dependentes de contratação, como finanças, inovação tecnológica e infraestrutura, têm dificuldade de prosperar nesse quadro.
O Brasil funciona assim, à base do “jeitinho”, há bastante tempo. Mas a falta de previsibilidade parece estar se agravando, por conta, entre outras coisas, do crescente número de brasileiros que buscam um “amigo” no judiciário. O resultado é a crescente judicialização dos conflitos: em 1988, houve ação judicial em 45% dos conflitos; em 2009, essa taxa subira para 70%.
Isso ajuda a explicar porque a justiça recebeu 29 milhões de casos novos em 2014. Muitos desses casos trazem o conflito e os problemas sociais para dentro da justiça, colocando os magistrados em uma situação em que a norma e o drama pessoal aparecem em lados diferentes. E, com o drama à porta, nem sempre é a norma que prevalece. Em que pesem as boas intenções, porém, a pulverização das soluções não tem resolvido os problemas. Em parte, porque o que pode fazer sentido no caso individual, pode não fazer no coletivo.
A judicialização da saúde pública é um exemplo. Magistrados mudam a ordem das pessoas na fila de transplante, ordenam gastos elevados com remédios caros, e impõem tratamentos de última geração, às vezes no exterior. Somadas as decisões, constata-se a alocação de parte relevante do orçamento público da saúde para um subgrupo de pacientes, deixando outros desassistidos e atrapalhando a gestão da saúde pública pelo Executivo.
A área de falências é outro exemplo. Alguns magistrados relutam em decretar a falência de empresas que deram errado, receando gerar desemprego. O resultado disso, e da alta informalidade, é um número elevado de empresas ineficientes, que puxam a produtividade do país para baixo. Se decretada a falência, esses trabalhadores iriam se ocupar em outras empresas, onde sua produtividade seria mais alta.
A crescente judicialização da política é outro fenômeno que eleva a incerteza. Cada vez mais o conflito político se concentra nos tribunais. Hoje parece que as colunas de política dos jornais falam mais do STF do que do Congresso.
É difícil ser otimista sobre esse processo: essa entropia tende a se auto alimentar. Na saúde, decisões favoráveis aos pacientes estimulam mais demandas judiciais. Na política, se o poder se concentra nos tribunais, é para lá que a briga pelo poder vai migrar.
Reverter esse processo é difícil. Por exemplo, no caso da justiça, a grande latitude para sustentar variadas decisões com base em princípios constitucionais sugere que não se trata de aprovar novas leis. E o fato de os magistrados brasileiros decidirem de forma monocrática, livres de regras do precedente, limita, ainda que não elimine, a influência da jurisprudência dos tribunais superiores. Não há sinal de que isso vá mudar.
Além disso, há claros ganhadores com esse estado de coisas que vão brigar contra mudanças. A tendência é de que quem está fora vá também buscar dar um “jeitinho”, “um amigo” com quem manda; ou então tentar criar e implementar suas próprias regras. Há também um componente cultural, que valoriza a flexibilização das regras e desconsidera suas implicações sociais e econômicas.
Ainda assim, há medidas que talvez possam mitigar esse processo – quem sabe, até interrompê-lo. Por exemplo, cobrar autodisciplina dos órgãos públicos quanto à edição de novas regras, exigindo que, para cada nova regra, outras sejam eliminadas. Também pode ajudar criar um Fórum Nacional da Segurança Jurídica, envolvendo os três poderes, que promova a clareza, estabilidade, impessoalidade e previsibilidade das regras e de sua aplicação.
O Executivo, o Congresso, o Judiciário e a sociedade civil têm grandes pensadores. É hora de eles e elas mergulharem no problema de como melhorar a nossa segurança jurídica. Sem ela, o nosso desenvolvimento econômico continuará devagar, quase parando.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 24 de fevereiro de 2017.
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