Eis um par perturbador que vai do fuxico a como agir sobre o mundo, e ao modo pelo qual somos obrigados a nos dirigir ao rei, a Deus e aos mortos.
De que modo seremos mais bem ouvidos? Mas será que somos ouvidos quando sabemos que o sofrimento jaz no silêncio das perguntas sem resposta?
Se eu escrever “mão” é uma coisa, mas escrever “não” é outra muito diferente. Um mero som muda o significado; haja trabalho para entender o elo entre som e sentido. O pensamento é falado para dentro e só pode surgir por meio de algum meio. Falar, memorizar, escrever, gravar, arquivar e divulgar revelam e transformam o mundo que, por sua vez, retorna modificando tudo novamente.
A invenção da imprensa é um bom exemplo. Sabemos que ela produziu um imenso conhecimento e, dando a muitos aquilo que era de poucos, foi acusada de abuso. Como publicar protestos contra a religião dominante? Como satirizar a realeza e protestar contra o poder? Como contrariar a autoestima afirmando que não somos o centro do universo? Como estudar costumes primitivos? Ou escrever sobre os mais secretos desejos humanos? E, pior que tudo isso, como especular sobre a possibilidade de que nada — salvo a orgulhosa coragem humana — faz sentido?
O meio é bom, mas a mensagem não presta, falamos quando lemos algo contra nós. Mudando a mensagem — quem sabe —, equilibramos. Seria mordaça? Não, dizem os hipócritas. A “nobreza” da escrita não deveria contrariar os bons costumes (os nossos costumes!). Mas e se formos mais realistas — diz um outro — e proibirmos de uma vez por todas as imoralidades?
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Eis o que de imediato faz surgir a “subversão” — essa palavra relativizadora, que, obviamente, depende de um ponto de vista.
O dilema mostra como somos abertos à censura e à liberdade. Daí a expulsão do paraíso porque, como deuses em tamanho pequeno, tomamos partido mesmo sem saber porque assim o fazemos.
Podemos, contudo, suprimir os meios, mas não as mensagens que, com ou sem eles, adquiram corpos e espíritos. Se não se pode escrever, cantamos. Se não há estrutura partidária, usa-se a rede…
O último recurso é acusar a internet. Mas como impedir sua presença quando ela mal nasceu e já envelheceu? Num sistema cuja ética é a de não ter nenhuma fidelidade a coisa alguma, pois matamos faz tempo uma entidade chamada “Deus”, só resta admitir a impossibilidade impossível de parar de inventar. A bomba atômica e os pecados mortais não podem ser desinventados.
Para complicar, pensemos num revólver.
No filme “Shane” (“Os brutos também amam”; Paramount, 1953), o dilema é apresentado de modo claro…
Shane é um pistoleiro tentando fugir de seu passado que resolve defender um agricultor pressionado pelos poderosos criadores de gado. Em meio à violência, surge o inesperado. Marian, esposa do roceiro, e o seu filho Joey se enternecem por Shane, que, freudianamente, tem um revólver. Numa cena em que Shane decide mostrar ao menino o poder da arma, tirando-a de uma sombra repressiva, ocorre um diálogo importante.
Shane: “Uma arma é um instrumento, Marian; não é nem melhor nem pior do que qualquer outro instrumento. Uma arma é tão má ou boa quanto o homem que a usa. Lembre-se disso.”
Marian Starrett: “Seria muito melhor se não existisse uma única arma neste vale, incluindo a sua…”
Pode-se acabar com o telefone porque ele é irresponsavelmente usado? Seria conveniente liquidar o jornal porque ele anuncia más notícias, e gente como eu, que fala dessas coisas?
Como acabar com bombas atômicas se não conseguimos nos envergonhar da pobreza que engendramos?
Cheguei ao meu limite (de toques). Mas ainda tenho espaço para perguntar: como detonar uma democracia?
A mais efetiva é não aceitando os riscos de perder ou ganhar excluindo o concordar em discordar. Esse assombroso paradoxo para os neoabundantes democratas nacionais.
Fonte: “O Globo”, 24/10/2018