Boris Johnson nunca escondeu sua intenção: tirar o Reino Unido da União Europeia (UE) de qualquer maneira no dia 31 de outubro, com ou sem acordo – nas suas palavras, “do or die”, vivo ou morto. De que o preço econômico a pagar seria alto, jamais houve dúvida. Ficou claro ontem que o preço político também será altíssimo.
Ao conseguir da rainha a suspensão da sessão parlamentar por um período inédito de cinco semanas, manobra para evitar que o Parlamento tome qualquer decisão sobre o Brexit no período, Boris lançou o país numa crise constitucional sem precedentes.
O motivo é a característica singular da democracia britânica: o Reino Unido não tem Constituição escrita, estabelecendo as regras do jogo democrático. A terra da Magna Carta não tem uma Carta Magna.
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Boris diante do abismo
Eleições, partidos, mandatos e toda regulação política estão sujeitos não a uma lei maior, mas a costumes consolidados ao longo dos anos, a leis eventuais – a úlitma delas aprovada em 2011 – e ao arbítrio e humores de juízes ou monarcas, instados a dirimir conflitos.
Só isso explica que Boris – eleito líder do Partido Conservador (portanto premiê) por 92.153 filiados, 66% dos que votaram ou 58% do total – tenha o poder de aplicar a manobra que imobiliza um Parlamento eleito por 69% dos 46,8 milhões de eleitores britânicos.
Embora a maioria tenha votado pela saída da UE no plebiscito de 2016, ninguém sabia em que tipo de saída votava. A perspectiva do Brexit sem acordo jamais foi submetida aos eleitores, nem a uma votação parlamentar (numa apenas indicativa, foi derrotada por um voto). Tomar tal decisão sem aval do Parlamento não combina com democracia.
O acordo para o divórcio fechado por Theresa May foi derrotado três vezes pelos parlamentares e precipitou a queda dela. Mas não há outro à vista. Os europeus repetiram a Boris pela enésima vez que não reabririam negociações. Parlamentares oposicionistas e conservadores contrários ao divórcio sem acordo já articulavam a legislação para revogar o Brexit caso esse cenário se tornasse inevitável.
A perspectiva, portanto, era que o Parlamento, ao voltar do recesso na semana que vem, tomasse alguma medida legal para suspender o Brexit. Em vez disso, Boris manobrou para suspender o Parlamento. Para isso, lançou mão de uma prática conhecida em inglês como “prorogation”. O presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow, qualificou a manobra como “ultraje constitucional”.
Por meio da “prorogation”, a atual sessão parlamentar é encerrada, as leis cuja discussão está em andamento são descartadas, uma nova sessão é convocada – e só pode ser aberta por um discurso da rainha. Em geral, isso ocorre anualmente. A suspensão se dá por alguns dias, não mais de uma semana. A atual sessão do Parlamento, porém, já dura desde a eleição de 2017, tomada pela angústia do Brexit.
A questão, portanto, não está na manobra em si, mas no período inusitado, de cinco semanas. Na falta de uma lei que regule os trabalhos parlamentares, a nova convocação depende exclusivamente da vontade da rainha – ou, na expressão britânica, da “prerrogativa real”.
Ela aceitou as cinco semanas ontem, depois de uma reunião no castelo escocês de Balmoral, onde passa férias, com o Conselho Privado, grupo ligado ao premiê formado por parlamentares notáveis. Ontem eram apenas três, liderados por Jacob Rees-Mogg, tido o como o mais radical partidário do Brexit.
Não adiantaram as cartas de líderes da oposição afirmando que a medida era contrária à vontade da maioria parlamentar. Entre as medidas articuladas pela oposição em parceria com os conservadores dissidentes, estava revogar a licença de três semanas no final de setembro, dedicada às convenções partidárias, para garantir mais tempo à discussão sobre o Brexit sem acordo.
Com a “prorogation”, esse período agora se limita à semana que vem e a pouco mais de dez dias depois da retomada dos trabalhos, em 14 de outubro. Boris afirma que haverá “tempo o bastante” para discutir os resultados da reunião decisiva com líderes europeus, marcada para 17 de outubro, última oportunidade para um novo acordo antes da data fatídica do dia 31.
É evidente que, mantidas as atuais circunstâncias políticas, a suspensão do Parlamento dá uma margem ínfima de manobra para evitar a saída da UE sem acordo, que se torna a cada dia o cenário mais provável. A alternativa da oposição seria uma moção de desconfiança contra o governo, para derrubar Boris e convocar novas eleições.
Dificilmente os parlamentares conservadores, mesmo os dissidentes, encarariam o risco associado a tirar um premiê do próprio partido e enfrentar a incerteza das urnas num momento de tanta tensão. O próprio Boris parece convencido de que o melhor momento para isso seria depois do dia 31, com o Reino Unido já fora da UE.
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Os filiados do Partido Conservador que o escolheram premiê preferem o Brexit sem acordo por uma proporção de dois contra um. No eleitorado representado no Parlamento, a proporção contrária a essa visão é de três a dois. É evidente que tal situação, embora não viole as regras, viola princípios democráticos.
Só é possível numa monarquia regida pelas práticas singulares do Reino Unido. O mais irônico é que, embora o Brexit tenha rachado o país ao meio e tornado clara a falta que faz uma Constituição, ao mesmo tempo tornou menos viável qualquer discussão madura sobre o tema.
No clima atual de conflito, em que todos só querem saber de derrotar o adversário, o que prospera não são debates sérios sobre o futuro do país, mas manobras “espertas”, como a “prorogation” de cinco semanas com aval da rainha.
Fonte: “G1”, 29/08/2019