Todo mundo quer um liberal para chamar de seu. Fernando Henrique tinha Gustavo Franco. Lula, por um tempo, teve Marcos Lisboa. Temer tem Meirelles e companhia. Bolsonaro foi atrás de Paulo Guedes. Alckmin chamou Pérsio Arida. Só que o sentido de liberal transcende a economia. Há liberal-conservador, liberal-progressista, liberal-democrata, liberal-social, libertário, liberalocrata, liberaloide – o adjetivo “liberal” virou uma espécie de prefixo genérico, aposto a qualquer palavra ou desinência para agradar o público. “Sou um liberal… significa qualquer coisa”, respondia cinicamente, ao ser questionado sobre suas posições políticas, um jovem russo aliciado pela máquina de propaganda de Vladimir Putin. Nos Estados Unidos, o liberal é alguém de esquerda, defensor da liberdade de comportamento (em especial sexual). No Brasil, é de direita, defensor da liberdade de mercado (pejorativamente xingado de “neoliberal”). Não é um acaso que “liberal” tenha adquirido sentidos tão díspares, a ponto de ser aplicado a gente de todos os cantos do espectro político. Entre as ideologias dominantes no mundo moderno, o liberalismo foi a primeira a surgir e a única cujas ideias ainda predominam. No século XX, derrotou suas duas maiores rivais: o fascismo e o comunismo. A queda do Muro de Berlim levou o cientista político Francis Fukuyama a vislumbrar, em 1989, o “fim da História”, com a vitória da “democracia liberal”.
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Teimosa, a História não acabou. Enquanto no Brasil todos querem ser liberais, no mundo o liberalismo enfrenta sua maior crise desde que o filósofo Michel de Montaigne plantou suas primeiras sementes no século XVI. A ascensão da direita nacional-populista, o Brexit, o avanço das democracias “iliberais” no Leste Europeu, a mutação da Primavera Árabe num “inverno islâmico”, o retrocesso ditatorial em países como Filipinas, Venezuela, Turquia ou Rússia, a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, tudo isso resultou numa montanha de dúvidas – e numa safra de novos livros. “O liberalismo ocidental está sitiado”, afirma o jornalista britânico Edward Luce em The retreat of western liberalism (O recuo do liberalismo ocidental). Em Age of anger (Era da ira), o indiano Pankaj Mishra atribui as raízes da crise à oposição entre dois dos maiores filósofos iluministas, Voltaire e Rousseau. O pop star israelense Yuval Noah Harari prefere, em Homo Deus, olhar para o futuro. Prevê o advento de um mundo “pós-humano”, em que a engenharia genética e a inteligência artificial eliminarão a autonomia individual, sustentáculo do projeto liberal. “A autoridade se deslocará dos humanos para os algoritmos”, diz Harari. “Eleições democráticas e livre mercado ficarão obsoletos.”
Nenhum livro tem gerado tanto barulho quanto um volume mais modesto nas pretensões, mas mais sofisticado nas conclusões: Why liberalism failed (Por que o liberalismo fracassou), do cientista político Patrick Deneen, da Universidade de Notre Dame. “Cada promessa dos arquitetos do liberalismo espatifou”, escreve Deneen num tom que lembra as profecias de Jeremias. “O liberalismo rejeita a concepção antiga de liberdade como capacidade de dominar a busca servil de desejos primitivos hedonistas. Em vez disso, entende a liberdade como condição em que é possível agir de modo autônomo.” A consequência, diz ele, é um paradoxo: quanto mais é preciso garantir a autonomia do indivíduo, maior precisa ser o poder do Estado. É por isso que, para Deneen, o fracasso do liberalismo deriva de seu próprio êxito. Ao romper os laços comunitários de aldeias, igrejas, escolas e famílias, a progressiva autonomia individual faz crescer o Leviatã. “O Estado liberal se expande para controlar cada aspecto da vida, enquanto os cidadãos olham o governo como um poder distante e incontrolável.”
Conservadores protestam em nome das tradições – mas só têm sucesso no livre mercado e na globalização. Progressistas defendem comunidades de perdedores – mas só têm sucesso na autonomia sexual e na nova estrutura familiar. Enquanto direita e esquerda se digladiam, a liberdade individual avança tanto na economia quanto no comportamento. Deneen critica o primado da tecnologia sobre a tradição. Cristão devoto, defende o retorno a um mundo comunitário, regido por normas religiosas e econômicas sobrepujadas pelo liberalismo. Esquece apenas que era um mundo em que poucos passavam dos 40; morria-se de infecções banais; reis e nobres viviam a cortar cabeças; cientistas morriam queimados por dizer a verdade; a miséria era endêmica; transportes e comunicações, precários; mulheres, homossexuais e crianças não tinham direito algum; guerras religiosas matavam milhões. Também esquece que, apesar das imperfeições, o liberalismo renasceu depois de cada crise nos últimos séculos. Até agora, a humanidade não criou nada melhor.
Fonte: “Época”, 25/02/2018