Peru, Equador, Uruguai e Chile enfrentam protestos e violência nas ruas. A Argentina se prepara para a volta ao poder do peronismo. Em nenhum país latino-americano, porém, a democracia parece tão em risco quanto na Bolívia. O resultado apertado das eleições do último domingo desencadeou uma crise de desfecho imprevisível.
A dúvida é se os bolivianos terão a chance de escolher seu líder num segundo turno ou se o presidente Evo Morales tentará se perpetuar no poder, com uma manobra ao estilo do venezuelano Nicolás Maduro.
Mais pragmático dos líderes latino-americanos associados ao bolivarianismo, Evo classificou como tentativa de “golpe de Estado” a auditoria pedida pela Organização dos Estados Americanos (OEA) na apuração das eleições. Na verdade, golpe seria sua permanência no poder sem que haja segurança sobre os resultados.
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Até o momento, pelas regras eleitorais bolivianas, as urnas apontam a necessidade de segundo turno. Com 96% das atas eleitorais verificadas, Evo tinha 46,4% dos votos, e o candidato da oposição, o ex-presidente Carlos Mesa, 37%. Pelas regras eleitorais bolivianas, para vencer ele precisaria ter mais de 40% dos votos válidos e abrir uma diferença mínima de 10% sobre o segundo colocado.
Os partidários de Evo argumentam que os votos ainda não contados lhe darão a vitória, pois vêm de regiões de difícil acesso, com alto percentual de população indígena, predominantemente evista. As suspeitas que pairam sobre a apuração parecem, contudo, fundamentadas. Elas derivam da discrepância verificada entre os dois métodos usados pelo governo para contar votos: um a um ou pela soma dos registros nas atas de cada mesa de apuração.
Na noite de domingo, quando 89% dos votos estavam apurados, o resultado sugeria a necessidade de segundo turno. Um dia depois, faltando quase 5% dos votos a apurar, o governo anunciou a vitória de Evo. Na terça feira, foi retomada a contagem por meio da verificação das atas eleitorais, que até agora confirma o segundo turno.
OEA, Estados Unidos, Brasil, Argentina, Colômbia e União Europeia se manifestaram em favor do respeito ao resultado. Evo tem um histórico de desafio às regras do jogo democrático para permanecer no poder. Lançou mão de uma manobra judicial para concorrer ao terceiro mandato. Em 2016, quando perdeu o plebiscito em que pleiteava disputar o quarto, recorreu de novo ao Tribunal Constitucional. Seu nome só está nas urnas agora graças à decisão favorável.
Pela primeira vez desde 2005, a oposição tem uma chance concreta de vitória, caso consiga união em torno de Mesa no segundo turno. Evo perdeu apoio em sua base eleitoral em virtude dos incêndios na Amazônia boliviana e da ascensão repentina do pastor metodista Chi Chung, cujo discurso conservador o levou ao terceiro lugar.
A economia boliviana enfrenta dificuldades. Antes reconhecido como distinto dos congêneres bolivarianos pelo conservadorismo monetário e pelo apreço ao equlíbrio fiscal, Evo descuidou das contas públicas nos últimos anos. O superávit primário até 2014 se transformou num déficit hoje estimado em 6,6% do PIB. A inflação ainda está sob controle, mas o desemprego e a crise das exportações (em especial de gás para o Brasil) deixaram o país à mercê de condições externas inóspitas.
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Evo ainda é idolatrado no altiplano e comanda uma rede extensa de movimentos sociais, que certamente criariam problemas à oposição, caso ela se saísse vitoriosa. Mesa também tem apoio frágil nos setores ligados ao agronegócio, estabelecidos na província de Santa Cruz, que faz fronteira com o Brasil. Ainda que haja segundo turno e ele saia vitorioso, dificilmente obterá a maioria parlamentar necessária para governar.
O espectro de Evo continuará ainda a assombrar a Bolívia por muito tempo. É sempre preferível, porém, seguir o exemplo democrático da esquerda brasileira – que, mesmo a contragosto, deixou o poder quando perdeu – a repetir o roteiro de Maduro e transformar também a Bolívia numa ditadura bolivariana.
Fonte: “G1”, 24/10/2019