Após a queda do Muro de Berlim, a democracia liberal parecia destinada a se espalhar pelo mundo. Em especial, se acreditava que essa prevaleceria nos antigos países comunistas, não apenas na Europa, mas também na África e outras regiões. E foi, até certo ponto, o que aconteceu. O que reforçou a ideia de que também na China o progresso econômico levaria em algum momento a mudança semelhante de regime político.
Em anos recentes, porém, esse processo parece ter sido revertido, a ponto de vários analistas entenderem que a democracia liberal está em crise. Já fiz menção aqui ao bom livro de Manuel Castells sobre esse tema (“Ruptura”). Esta semana foi a vez de Martin Wolf tratar do assunto em sua coluna no Financial Times, elencando um decálogo de atitudes que entende necessárias para que lideranças políticas de centro possam se contrapor a políticos autoritários ou demagogos (ver bit.ly/2H4kC5Z).
Me impressionou um dos gráficos no artigo de Wolf, que revela que o apoio à democracia cai com a idade. Nos EUA, a proporção dos nascidos nos anos 1980 que consideram essencial viver em um país governado democraticamente é menos da metade (cerca de 30%) do que entre os nascidos na década de 1930 ($> 70%). Na Europa há mais estabilidade, mas ainda assim essa proporção é cerca de um quinto mais baixa entre os nascidos nos anos 1980 do que entre os que nasceram nos anos 1950.
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Dados de pesquisa do Latinobarómetro sobre o apoio à democracia na América Latina também revelam um quadro preocupante (www.latinobarometro.org/lat.jsp). A pesquisa mostra que, na América Latina, a proporção dos que acreditam que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo” caiu de 61% em 2010 para 48% em 2018. Assim como nos EUA e na Europa, o apoio à democracia também é menor entre os mais jovens. Como conclui o Latinobarómetro: “Temos evidência sólida de que o autoritarismo cresce à medida que diminui a idade. São os mais jovens os mais autoritários”.
O Brasil apresenta indicadores ainda mais preocupantes. Em 2018, só 34% dos brasileiros entrevistados pelo Latinobarómetro consideravam que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo”, à frente apenas de Guatemala e El Salvador (28% em ambos os casos) e empatado com Honduras, com uma queda considerável desde o pico de 55% de concordância observado em 2009. E 41% dos brasileiros apontaram em 2018 que “dá no mesmo um regime democrático que um não democrático”.
Os resultados do Latinobarómetro reforçam a visão de que essa queda no apoio à democracia resulta, em parte, da avaliação de uma parcela crescente da população de que não está se beneficiando do progresso econômico. Na América Latina, isso ocorre por a economia ir mal desde o fim do ciclo de commodities e devido à má distribuição da renda.
Assim, a queda no apoio à democracia coincide com a redução da proporção dos que estão satisfeitos ou muito satisfeitos com o funcionamento da economia de seus países, de 30% em 2010 para 16% em 2018. Uma queda idêntica à observada na proporção dos que estão satisfeitos ou muito satisfeitos com o funcionamento da democracia em seus países: de 44% em 2010 para 24% em 2018. Também nesse período houve uma forte alta na proporção dos que consideram que grupos poderosos governam seus países em benefício próprio: de 61% em 2009 para 79% em 2018.
Também nesses itens o Brasil se destaca. Em 2018, apenas 5% dos brasileiros se diziam satisfeitos ou muito satisfeitos com o funcionamento da economia, atrás apenas da Venezuela. E apenas 9% se mostraram satisfeitos ou muito satisfeitos com o funcionamento da nossa democracia, a mais baixa taxa entre os países estudados, com uma queda significativa em relação aos 49% que tinham essa avaliação em 2010. Da mesma forma, somos o país com maior proporção de pessoas que acreditam que o governo é capturado pelos interesses dos grupos poderosos (90%).
Eu tenho uma visão mais positiva sobre a nossa democracia do que essa pesquisa revela ser a avaliação média nacional. Acho que desde a redemocratização, em 1985, avançamos muito em vários indicadores sociais – saúde, educação, pobreza etc – e na proteção aos direitos individuais. Mas também penso que o modelo de democracia então concebido, e em grande parte embutido na Constituição de 1988, perdeu muito de sua funcionalidade, pelo menos em termos de gerar e distribuir progresso econômico. Ele se baseia em uma expansão acelerada do gasto público e na captura do Estado por grupos de interesse que são insustentáveis e distorcem muito o funcionamento da economia. Precisamos de uma democracia mais baseada na criação de boas oportunidades econômicas e na eliminação de privilégios, de forma que possa haver uma competição justa entre os que querem aproveitar essas oportunidades.
Não repensar nossa democracia pode nos condenar a um “novo normal” em que o mau desempenho da economia e o extremismo político se combinam para gerar um equilíbrio ruim, que reforçará a atual trajetória de deterioração econômica e social.
Fonte: “Valor Econômico”, 03/05/2019