Ao contrário de em outros momentos em que o país não tinha reservas internacionais suficientes para amortizar choques internacionais, diferente de países como argentina e Turquia, o problema fiscal não equivale a desvalorizações excessivas no câmbio como ocorreu em 1979, 1983 e 1999 (estamos falando em desvalorizações acima de 30%). E sim na continuidade de políticas públicas e na taxa de juros excessivamente elevada. Trocando em miúdos, equivale a uma doença degenerativa e não a um infarto cardíaco. Ou como o Professor do EPGE/FGV tem ilustrado, é uma “cirrose fiscal”.
Nesse aspecto, o debate sobre a Emenda Complementar 95, chamada de Teto dos Gastos, expôs não só a incompreensão da sociedade da importância de medidas como essa, mas também a importância que essa medida teve como âncora das expectativas do mercado.
Às vezes me parece que temos memória curta. Relembremos 31 de agosto de 2015, quando o governo encaminhou ao congresso um orçamento deficitário. Os investidores não tardaram a reagir, o risco de calote da dívida explodiu, o câmbio chegou a quase R$ 4 no mercado à vista e R$ 6 no mercado futuro, a taxa de juros apontou para 17% nos prazos mais longos.
Nada mais natural que as perspectivas de investimento e crescimento irem para o chão, levando o país à maior crise econômica de sua história. Independente dos problemas que a proposta tem, ela teve importância ao evitar o pior. Por isso deve ser discutida e debatida melhor.
Veja também:
Raul Velloso: Punições despropositadas
Teto de gastos: remédio, não doença
Zeina Latif: Balzaquiana, mas flexível
Primeiro, um pouco de história econômica. A expansão discricionária dos gastos desde a segunda guerra mundial até os anos 1980 resultaram em crescimento baixo e inflação elevada ao redor do planeta.
Após a grande crise de 1929, o consenso econômico sugeria que as crises econômicas poderiam ser evitadas por meio de estímulo à demanda agregada – conhecido pelos economistas como políticas keynesianas. Ou seja, os gastos públicos elevariam o consumo e proporcionariam um ambiente de previsibilidade na economia para que empresários investissem.
Os excessos cometidos pelos governos no pós-Segunda Guerra Mundial resultaram em déficits sistemáticos e contribuíram para as crises de estagnação econômica com inflação elevada na década de 70 (lembra de algum país no período recente?).
O keynesianismo e a discricionariedade na condução das políticas econômicas são refutadas não só entre tesouros nacionais e bancos centrais, como também no campo das ideias. Dessa maneira, surge a teoria das expectativas racionais, e consequentemente o consenso de que a economia sendo conduzida por regras possibilitaria menor incerteza econômica, inflação e maior crescimento sustentado da renda por habitante.
Essas, provavelmente, são as principais razões que levam governos ao redor do mundo, desde 1980, a adotarem regras fiscais como a EC 95. O objetivo mais óbvio é de evitar que se gaste em excesso, principalmente em momentos de bonança (nesse aspecto, o boom das commodities nos tornou experts no assunto) ou que grupos de pressão garantam em lei, privilégios que tomam todo o orçamento, beneficiando apenas minorias.
Em suma, se busca com essas regras instituições inclusivas, o que na taxonomia introduzida pelos especialistas em desenvolvimento econômico, Daron Acemoglu e James Robinson, se reflete em atitude republicana e responsável por parte dos políticos.
O objetivo menos óbvio, mas igualmente importante, é de garantir estabilidade macroeconômica e sustentabilidade fiscal. Sem esses dois fatores, a continuidade das políticas públicas e avanços sociais não são garantidos. Em países sérios inexiste a discussão da adoção ou não de regras que evitem déficits sistemáticos, além disso, o debate é muito mais qualificado. Se discute quais os limites dessas regras e qual a mais adequada para cada realidade.
Assim como não existe país perfeito, não existe uma regra fiscal perfeita. Diferentemente do Brasil, em que as imperfeições das regras são usadas para fazer gol e correr para a torcida na caminhada eleitoral, os demais países tendem a adotar mais de uma regra para garantir a correção das imperfeições e para que a casa fique arrumada.
Em tempos de corrida presidencial, não é somente a existência das fake news que nos preocupam, como também a desonestidade intelectual usada em benefício dos grupos de pressão.
No Brasil, a lei popularmente conhecida como teto dos gastos, impõe limite de aumento das despesas primárias (que não são ligadas ao custo da dívida), como constantes em termos reais, foi sancionado a partir da Proposta de Emenda Constitucional 55/2015. O discurso rasteiro veiculado é de que o teto de gastos limita a expansão de gastos para Educação e Saúde. Quando na realidade, a emenda institucionaliza um piso de gastos para as duas rubricas. Vejamos o que diz a lei primeiro no Artigo 110:
[…]”Na vigência do Novo Regime Fiscal, as aplicações mínimas em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção e desenvolvimento do ensino equivalerão: I -no exercício de 2017, às aplicações mínimas calculadas nos termos do inciso I do Par. 2o do art. 198 e do caput do art. 212, da Constituição Federal; e II -nos exercícios posteriores, aos valores calculados para as aplicações mínimas do exercício imediatamente anterior, corrigidos na forma estabelecida pelo inciso II do Par. 1o do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”[…]
Particularmente, a regra do teto dos gastos (EC 95) adotada pelo Brasil não é a única existente, nem a mais comum. Mas, sem sua aprovação, provavelmente a estabilização da inflação, da taxa de juros, do câmbio e a guinada para um tímido crescimento econômico não haveriam ocorrido. Entretanto, vale ressaltar que a EC 95 é condição necessária, mas não suficiente para a estabilização da situação fiscal enfrentada pelo governo.
Além da estabilidade econômica no curto prazo, o tipo de regra adotada no Brasil garante redução do tamanho e distorções da máquina pública. Evidentemente um problema para a classe política, que deverá trabalhar mais e comunicar de maneira mais adequada por uma quantidade limitado de recursos. Ou seja, as contas devem ser mais transparentes e a agenda mais focada em eficiência dos gastos. Exige-se também esforço adicional da sociedade, que deverá ser mais ativa e capaz de estabelecer prioridades.
A principal desvantagem desse tipo de restrição é que ela não está necessariamente ligada à estabilidade da dívida, pois as receitas não estão amarradas à regra; e, sem uma discussão na sociedade a respeito das prioridades de gastos, pode haver vazamento de recursos para agendas que a sociedade não considera importantes, como o programa ROTA 2030, a indústria naval ou a bolsa empresário.
Que instituir regras é importante a gente já sabe, mas quais as alternativas e seu limites? Na pesquisa do FMI, “Fiscal Rules in Response to the Crisis—Toward the “Next-Generation” Rules. A New Dataset”, os pesquisadores Andrea Schaechter, Tidiane Kinda, Nina Budina, and Anke Weber fazem um estudo minucioso acerca das vantagens, desvantagens e principais regras adotadas ao redor do mundo.
As mais usadas ao redor do mundo são as regras que impõem limite na dívida e as que estabelecem equilíbrio orçamentário. Apesar de ambas serem fáceis de monitorar pela sociedade e congresso, são facilmente manipuláveis pelo ciclo econômico e podem não ser viáveis no curto, médio prazo.
O primeiro tipo de regra não evitaria o desastre fiscal no Brasil recente, visto que mesmo com a vigência dessa regra, a insustentabilidade da razão divida/PIB seria igualmente mascarada como ocorreu durante o boom das commodities e consequente crescimento extraordinário da receita; ademais, ela garante objetivos de longo prazo.
Já o segundo tipo de regra, que estabelece o equilíbrio entre receitas e despesas, não só impõe um sacrifício muito elevado para a sociedade no curto prazo, como também pode ser facilmente manipulada politicamente quando há um crescimento elevado do produto. Exemplificando rapidamente, em 2016, para que o orçamento fechasse o ano em equilíbrio, a sociedade brasileira teria que poupar em torno de 5% do PIB ou 300 bilhões de reais.
Métodos econômicos e estatísticos avançados nos permitem hoje simular as características da economia Brasileira e entender quais os possíveis efeitos da adoção desse tipo de regras no bem-estar da sociedade. Por exemplo, se fosse adotada a regra de gastos usada nos Estados Unidos aqui no Brasil, no curto prazo haveria maior austeridade fiscal e menor crescimento relativamente à EC 95/2015. Já no longo prazo, esse sacrifício da sociedade teria aberto caminho para crescimento sustentado com inflação controlada. Evidencia de que a regra fiscal adotada no Brasil não impõe o ajuste necessário.
Apesar da regra do teto dos gastos não ser perfeita, foi efetiva para reduzir a incerteza da economia nesse período. Entretanto, o problema de endividamento público é complexo. A evidência internacional mostra que o uso de regras fiscais não só é insuficiente para garantir estabilidade fiscal, como também apresentam um dilema claro: as regras devem ser rígidas ou frouxas?
No texto de discussão da NBER, “Fiscal Rules: Theoretical Issues and Historical Experiences”, Charles Wyplosz – Professor do Graduate Institute de Genebra-, explorou 50 anos de dívida pública, regras e instituições fiscais em diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
O autor mostra que os arranjos institucionais das experiências positivas são variados, mas a combinação de instituições fiscais com corpos técnicos e independentes que tenham o potencial de punir politicamente os governos irresponsáveis, e regras fiscais com aderência à realidade local foram um sucesso em países como Holanda e Grã-Bretanha. Outros países implementaram instituições fiscais no nível federal como USA e Canada. Poucos são os exemplos que apostaram ou em regras ou em instituições e foram bem-sucedidos. No primeiro caso temos por exemplo o Chile e no segundo a Bélgica.
O Teto dos Gastos foi importante para estabilizar a economia no curto prazo, porém, não é suficiente para evitar o pior. Reformas importantes, como a da previdência devem ser encaradas com seriedade, assim como cargos e incentivos salariais para o setor público e políticas política públicas já implementadas deverão ser repensadas.
É notório nas peças literárias do Nobel Gabriel Garcia Marquez, que já saibamos o fim da história na primeira linha. Apesar de torcer a cada página para que o protagonista não encontre o seu destino, a morte anunciada chega.
Acompanhar o debate dos presidenciáveis no Brasil acerca do problema fiscal tem sido igualmente frustrante. Muitas das propostas não param de pé, e o que é pior, muitas vezes asseveram o problema. Obviamente, vontade não falta. Mas sem técnica e capacidade de articulação, o destino do país se assemelha ao do icônico personagem de Gabriel Garcia Marquez, Santiago Nasar, o de uma morte anunciada.
Fonte: “Terraço Econômico”, 15/10/2018