Temer explicou a reação brasileira às tarifas impostas pelos EUA sobre as importações de aço. O plano A é negociar isenções com Washington. Na hipótese de fracasso, o plano B é recorrer ao tribunal da Organização Mundial de Comércio (OMC). A armadilha montada por Trump funciona: cada um desses passos, que serão adotados por diversos outros países, contribui involuntariamente para demolir o sistema multilateral de comércio.
As tarifas não são, em si mesmas, um fator relevante para a economia global. George W. Bush já havia ensaiado proteger a siderurgia americana, mas sob justificativas diferentes, subordinadas às regras normais de arbitragem da OMC. A novidade é que Trump utiliza os instrumentos do protecionismo para avançar a estratégia nacionalista de “America First”: resgatar empregos nos EUA é apenas o pretexto para uma operação de sabotagem das regras do jogo.
Leia mais
Marcos Jank: Vivendo sob a cartilha mercantilista de Trump
Zeina Latif: Guerra comercial ou isolamento?
Marcos Troyjo: São Paulo, capital do Fórum Econômico Mundial
O primeiro elemento da armadilha encontra-se na justificativa legal das tarifas. Cinicamente, Washington invoca razões supremas de segurança nacional. A falsidade pode ser demonstrada tanto pela incongruência entre taxas alfandegárias lineares e o consumo efetivo de aços especiais em demandas do Pentágono quanto pelo fato de que os maiores exportadores de aço para os EUA são, precisamente, aliados americanos (Canadá, União Europeia, Coreia do Sul, México, Brasil, Japão e Taiwan). Mas a invocação praticamente anula a possibilidade de arbitragem na OMC, pois transfere o tema para o campo geopolítico da soberania nacional.
A corrente nacionalista que forma o núcleo do governo Trump explora perversamente os limites do sistema com a finalidade de implodi-lo. Se, diante de reclamações dos exportadores (como o Brasil), o tribunal da OMC conclui que a segurança nacional extrapola sua jurisdição, Washington “legaliza” suas tarifas, desmoralizando o livro de regras do comércio global. Por outro lado, se o tribunal impugna a alegação americana, Trump ganha o pretexto ideal para retirar os EUA da OMC. De um jeito ou do outro, cria-se o precedente histórico para a violação generalizada de acordos multilaterais fundados no interesse comum e na crença na boa-fé de todas as partes.
O segundo elemento da armadilha é a provisão americana de isenções seletivas, baseadas em negociações bilaterais. Analistas econômicos de visão curta saudaram as isenções concedidas ao Canadá e ao México, sublimando a circunstância de que são provisórias, dependentes da evolução das negociações sobre a reforma do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) pretendida por Trump. Em tese, o princípio bilateral aplicado no caso dos parceiros do Nafta estende-se potencialmente aos demais países (como o Brasil). O presidente americano esclareceu que está aberto a barganhas –e que as permutas viáveis não se circunscrevem ao terreno comercial.
No mercado de escambo trumpiano, as tarifas sobre o aço podem ser trocadas pela eliminação de taxas do parceiro sobre outros produtos, por iniciativas protecionistas do parceiro contra terceiros países (como a China) ou mesmo pela submissão a prioridades políticas americanas. No caso dos aliados europeus, o presidente americano chegou a sugerir que isenções poderiam derivar da ampliação dos gastos com a defesa. Tudo isso, que se deve batizar como uma “Rodada Trump” de negociações comerciais, contraria os acordos fundantes da OMC, dissolvendo o jogo das regras no ácido do poderio geopolítico e militar.
A OMC foi criada sob uma algazarra de protestos da “nova esquerda”. As reuniões ministeriais da fracassada Rodada Doha foram palcos de violentas manifestações patrocinadas por sindicatos e organizações de esquerda. Na sua ofensiva contra o sistema multilateral de comércio, Trump cumpre um programa compartilhado pela direita nacionalista e pela esquerda antiglobalização.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 17/03/2018