“De hora em hora o ser humano piora”, adorava declamar Carlos Heitor Cony. Quem concorda ficará atordoado se ler o mais recente livro de Steven Pinker, “O Novo Iluminismo”, que a Companhia das Letras lança em setembro. Para não jogar a toalha, terá de encontrar alternativas aos eloquentes 75 gráficos que sustentam uma dezena de teses: a humanidade está melhor do que nunca; a época atual é a mais pacífica e próspera da história; por toda parte as pessoas estão mais ricas; gozam de mais saúde; são mais livres; têm mais educação; estão mais pacíficas; e desfrutam de menor desigualdade social.
Já os esperançosos ficarão eufóricos, para não dizer em êxtase, com tão vigorosa e veemente defesa da razão, da ciência, do humanismo e do progresso. Em abordagem que tem o mérito de também discutir tanto as dúvidas em voga sobre a durabilidade dessa epopeia quanto a própria natureza do fenômeno.
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O capítulo sobre meio ambiente começa com excelente pergunta: será que o progresso é sustentável? E a resposta é uma feliz compilação das melhores críticas já feitas a tudo o que nos movimentos ambientalistas há de irracional, alarmista, romântico, mágico, moralista, religioso, lúgubre e conspiratório. Nem todos os argumentos são persuasivos, mas só se pode assinar embaixo quando o autor deduz que “apesar de meio século de pânico, a humanidade não está irrevogavelmente no caminho do suicídio ecológico”. Até porque o advérbio empregado torna tal conclusão acaciana.
Por incrível que pareça, a maior vulnerabilidade dessa 15ª obra de um dos mais notáveis professores do formidável eixo MIT-Harvard está no capítulo consagrado ao esclarecimento científico da natureza do progresso.
Até começam bem as treze páginas de teoria (em livro de 556), só precedidas por rápido sobrevoo do próprio significado do termo iluminismo. Nessa abertura, uma tese simplesmente inquestionável: o progresso advém da oposição/negação à entropia/desordem da segunda lei da termodinâmica. Aqui também só se pode concordar, embora a afirmação seja tautológica.
Sérios motivos de discordância surgem, contudo, com as duas hipóteses em seguida apresentadas como se fossem teses equivalentes à da irreversibilidade entrópica. Pinker afirma que a natureza do progresso é essencialmente explicada pelas oposições à entropia que lhe são oferecidas pela “evolução” e pela “informação”, o que condensa na bela tirada “Entro, Evo, Info”.
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Essa legenda talvez tenha grandes virtudes comunicativas, mas está longe de ser aceitável. Primeiro, porque a assumida abordagem da evolução não abrange toda a emergência de ordem por processos de auto-organização. O objeto sine qua non da conjectura de Darwin, ou de qualquer das outras narrativas sobre a evolução, sempre foi a vida. E esta surgiu há uns quatro bilhões de anos, quando a entropia já vinha enfrentando ferrenha oposição havia mais de dez bilhões de anos, com a formação das galáxias. Seria imprescindível, então, que o autor admitisse que todo o processo evolutivo da realidade inorgânica anterior e coexistente com a vida também obedeça ao esquema darwiniano. Ótima suposição, mas ausente do reles e fugaz parágrafo dedicado à questão.
Em segundo lugar, para que o prefixo “info” – de informação – merecesse o status a ele atribuído na trindade “Entro, Evo, Info”, seria preciso que na constituição do universo a informação tivesse papel equivalente aos da matéria e da energia. Ideia que foi defendida desde os anos 1960 pelo brilhante e imerecidamente olvidado economista Kenneth Boulding (1910-1993), mas que não entusiasmou os físicos. Quanto a isso, Pinker até chega a mencionar duas exceções: Seth Lloyd (2006) e Cesar A. Hidalgo (2015), ex-colegas no MIT. Mas não assume tal perspectiva, o que é séria incoerência.
O resultado é que a obra escamoteia a existência de confuso debate entre cientistas a respeito da emergência de ordem em oposição à entropia, que tem sido chamada de sintropia. Questão que parece ter sido desbravada pelo físico-químico belga de origem russa Ilya Prigogine (1917-2003), prêmio Nobel em 1977. Mas que, desde então, só gerou exercícios demasiadamente especulativos sobre os possíveis fundamentos da sintropia. A propósito: até aqui nem o próprio conceito de entropia tem sido explicado com clareza nos livros didáticos de física para o ensino superior.
É lamentável, portanto, que Pinker acene com a trindade “Entro, Evo, Info” para eludir a carência do conhecimento científico sobre a natureza do progresso que decorre do choque entropia/organização, ou desordem/ordem. Uma óbvia e direta herança da vitória de Parmênides (530-460 a.C.) sobre Heráclito (535-475 a.C.), pois uma pitada de dialética já ter-lhe-ia ajudado a dar alguma consistência à retórica de sua potente e admirável defesa empírica do iluminismo. Claro, desde que por dialética se entenda a unidade entre duas lógicas, entidades, ou instâncias que sejam concorrentes ou contrárias, mas que, nutrindo-se uma da outra, se completem enquanto se opõem.
Fonte: “Valor Econômico”, 31/07/2018