O País caminha, aparentemente, para que em outubro tenhamos aprovado o que terá sido a reforma mais profunda da Previdência desde a Constituição de 1988. Mesmo assim, não há razões para comemorar esse feito de forma muito efusiva, por dois motivos. Primeiro, porque a despesa previdenciária continuará aumentando em termos reais ano após ano, ainda que, naturalmente, numa velocidade bastante inferior em relação à que se verificaria se a reforma não fosse aprovada. E segundo, porque a reforma aprovada na Câmara deixou de lado os Estados e municípios. Considerando que o fluxo de desequilíbrio destes, pelo Anuário Estatístico da Previdência Social, passou de R$ 27 bilhões em 2010 para R$ 92 bilhões em 2017, tem-se uma sinalização da nossa lentidão paquidérmica em fazer mudanças estruturais, mesmo quando o País avança.
Tal omissão se explica, politicamente, como resultado do que em teoria dos jogos é um típico jogo não cooperativo. O exemplo clássico é o famoso “dilema dos prisioneiros”, em que dois detentos podem agir racionalmente ou, olhando puramente para seus interesses individuais, criar um resultado negativo para o conjunto representado pela soma de ambos. Como podemos entender que se tenha chegado a esta situação tão ruim para o País, de um problema óbvio e enorme não ser endereçado? Na verdade, isso é bastante fácil de entender quando se leva em conta o mosaico político dos Estados. Os governadores do Nordeste, pertencentes ao lado do espectro político associado (lato sensu) à esquerda, manifestaram-se, em sua maioria, pro forma a favor da reforma, porém ao mesmo tempo em que os parlamentares dos seus partidos, no Congresso e nas ruas, faziam campanha aberta contra a aprovação da PEC.
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Como a reforma envolve medidas impopulares e vários desses parlamentares oposicionistas serão candidatos a eleições majoritárias no futuro, o script que resultaria da aprovação da PEC original – que tinha os Estados e municípios na reforma – era muito claro: os Estados se beneficiariam da medida – pela contenção das despesas que resultaria da reforma –, enquanto, nas eleições de 2020 ou 2022, os deputados dos mesmos partidos que os governadores – que não votam no Congresso, em Brasília – fariam campanha contra os candidatos do centro e da direita, acusando-0s de terem votado a favor da reforma e “contra o povo”. Um contingente expressivo, portanto, de parlamentares do centro e da direita se aliou, na prática, à oposição no Congresso para bloquear a parte da reforma que afetaria os Estados, deixando-os de fora. A lógica é fazer os governadores “sangrarem” politicamente, assumindo o ônus de aprovar medidas duras de aumento do período de serviço dos servidores estaduais, o que em âmbito local deve provocar certo desgaste para eles.
Em mais de uma oportunidade, nos últimos meses, tenho utilizado a mesma expressão: “O nome do jogo é articulação política” (no mais alto grau). Foi ela a grande ausente nesse ponto específico. Lembremos que, em 2003, Lula aprovou a idade mínima e a taxação dos servidores – duas medidas politicamente explosivas até então – e, talvez por ter uma liderança maior sobre o Congresso, não só conseguiu fazer a reforma passar, como, além disso, o fez valendo para os três níveis de governo – central, estadual e municipal. A liderança e a articulação do Executivo não se fizeram presentes na reforma de 2019 e o resultado é essa reforma com apenas uma perna só – a federal.
O fato de a reforma não ter os Estados como parte inerente a ela acarreta dois grandes ônus. O primeiro é a questão fiscal em si. Como o problema previdenciário nas alçadas subnacionais é gravíssimo, manter os Estados fora da reforma é uma garantia de que seus problemas fiscais vão continuar, ou seja, de que não veremos tão cedo notícias como X sai da crise ou Após vários anos, Y volta a investir pesadamente, referindo-se aos Estados X ou Y.
O segundo problema é o risco de repetição de imagens como as que os habitantes do Rio de Janeiro vimos há quatro ou cinco anos, quando o Estado do Rio, na prática, quebrou e foi obrigado pelas circunstâncias a um ajuste num contexto de grande contestação social. Durante meses a população fluminense acostumou-se a cenas de ônibus queimados, vitrines quebradas, black blocs nas ruas, etc. E em muitos lares os servidores públicos, até mesmo aposentados e pensionistas do Estado, ficaram sem receber ou receberam com atraso por meses a fio. A perspectiva do risco de essas cenas se repetirem em diversos Estados durante um ou dois anos seria um pesadelo, quando se considera a necessidade de aumentar o investimento do País. Imagens como essas toda semana no noticiário seriam a melhor forma de dissuadir interessados em fazer apostas pesadas no futuro.
Por tudo isso, os Estados deveriam aproveitar para avançar na elaboração das próprias propostas a serem encaminhadas às respectivas Assembleias Legislativas, de preferência logo após a aprovação da emenda constitucional pelo Congresso Nacional. Aguardar, sem fazer nada, a aprovação de uma “PEC paralela” pode deixá-los na pior das situações, se ela for aprovada no Senado, mas esbarrar nas mesmas restrições que a original na Câmara dos Deputados.
Será praticamente impossível aprovar medidas duras em âmbito local no segundo semestre de 2020, quando toda a atividade política deverá girar em torno das eleições municipais de outubro do ano que vem. Ao mesmo tempo, 2021 está muito longe, quando se leva em conta a urgência da situação fiscal dos Estados. O ideal seria os governadores amadurecerem rapidamente as ideias a respeito do tema em outubro e encaminharem as propostas em novembro, para aprová-las na Assembleia até o segundo trimestre do ano que vem.
O País precisa virar essa página de uma vez por todas.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 5/9/2019