A facada no abdômen do deputado Jair Bolsonaro foi o ponto culminante de uma campanha eleitoral que alcançou níveis de radicalismo e bestialidade há muito não vistos por essas bandas. Argumentos e fatos não são tratados racionalmente. Absurdos e contradições são aceitos em nome de racionalizações ilusórias. Toda e qualquer opinião ou ação dos candidatos podem ser justificadas por argumentações as mais bizarras, absolutamente desprovidas de lógica e muitas vezes contraditórias entre si. Por outro lado, as opiniões e ações dos “inimigos” são tomadas como heresias abomináveis.
A tolerância, em quaisquer de seus sentidos, parece simplesmente ter desaparecido. Quem quer que já tenha se arriscado no universo político das redes sociais, ou mesmo das mesas de bar, sabe do que estou falando.
Se a paixão por uma ideia ou um valor elevado pode ser algo útil e até sublime, o radicalismo grupal é muito perigoso em todos os sentidos. Os contínuos desastres humanitários ao longo da História foram consequências principalmente da identificação excessiva dos homens com uma tribo, uma nação, uma seita religiosa, uma raça ou uma causa, ainda que os princípios e valores desses grupos fossem contrários à razão e prejudiciais à própria preservação da espécie.
Não por acaso, uma das características distintivas dos líderes totalitários, como ademais de qualquer mandatário coletivista, é a divisão da sociedade e do mundo em geral em grupos: castas, raças, classes, gêneros, religiões etc. A partir dessas divisões, o sujeito passa a ser bom ou mau, não por suas ações, opiniões e posturas individuais, mas de acordo com os grupos a que ele pertence.
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Quando o coletivismo se alastra, e as pessoas passam a se identificar exclusivamente com determinados grupos, suas faculdades críticas são encobertas e suas paixões cegas aumentadas por uma espécie de ressonância emotiva.
Não seria exagero inferir que talvez o principal problema da nossa espécie não seja a agressividade intrínseca dos indivíduos, mas a devoção fanática a grupos cujo denominador comum é o ódio a outros grupos. Quando olhamos a História, os crimes violentos cometidos por motivos egoístas, individualmente passionais e pessoais, são insignificantes, se comparados aos genocídios cometidos em nome da devoção abnegada a uma bandeira, um líder, uma fé religiosa, uma ideologia ou convicção política.
O fato é que as ações movidas por propósitos coletivistas são incomparavelmente mais perigosas do que as ações egoístas ou autointeressadas. Dito de outro modo: o indivíduo que age com excesso de autointeresse é muito menos perigoso para a sociedade do que o crente fanático por sua igreja, por seu partido, por sua raça ou por qualquer grupo social ao qual ele renuncie à sua identidade individual.
A expressão filosófica mais famosa e influente das ideias coletivistas no Ocidente está no “Contrato social”, de Jean-Jacques Rousseau, no qual se argumenta que o indivíduo encontra seu verdadeiro ser e liberdade apenas em submissão à “vontade geral”. Karl Marx, mais tarde, forneceu talvez a declaração mais sucinta e objetiva da visão coletivista: “Não é a consciência do homem”, escreveu ele, “que determina seu ser, mas seu ser social que determina sua consciência”.
A psicologia, por sua vez, explica que o aliciamento do indivíduo pelo grupo se dá através de vários mecanismos e tendências bastante humanas — empatia, simpatia, projeção, introjeção, identificação e adoração, entre outras. Sua incorporação ao grupo o faz sentir-se parte importante de alguma coisa maior, que transcende muitas vezes os limites do eu individual. Esse impulso psicológico de pertencimento — de participação, de comunhão — é, portanto, bastante humano, primário e quase irresistível.
O grande perigo está na natureza da entidade coletiva da qual o indivíduo se sente parte.
Fonte: “O Globo”, 17/09/2018