De todas as questões espinhosas que o Estado brasileiro precisará enfrentar nos próximos anos para recobrar a saúde fiscal, a mais difícil diz respeito aos privilégios do funcionalismo.
É uma questão explosiva, que costuma provocar uma reação corporativa virulenta. O próprio uso da palavra “privilégio” desperta reações apaixonadas. É mesmo injusto, apenas com base num auxílio-moradia aqui ou numa remuneração absurda acolá, estereotipar todos os funcionários públicos como nababos ou marajás.
São, afinal, “servidores” do público. Em tese, escolheram uma carreira potencialmente menos lucrativa do que poderiam ter no setor privado em nome do dever cívico. Mereceriam, por isso, maior segurança, estabilidade e benefícios compatíveis.
A cada dia, contudo, novos fatos se encarregam de desmentir essa visão. “Servidores federais com mesma idade, tempo no emprego, instrução, sexo, etnia e ocupação ganham quase o dobro do que trabalhadores da iniciativa privada de mesmas características”, afirma o economista Gabriel Nemer, do Instituto Mercado Popular.
Nemer e o também economista Naércio Menezes chegaram às seguintes conclusões a respeito da remuneração do funcionalismo, numa análise publicada em novembro passado pelo Insper:
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– Na média, a diferença salarial entre os setores público e privado cresceu, entre 1995 e 2015, de 70% para 80%;
– Na esfera federal, a diferença salarial média é de 270%. Na estadual, de 125%. Na municipal, de 32%;
– A parcela dessa diferença que pode ser explicada por variações na demografia, instrução e outros fatores caiu de 73% para 54%;
– A parcela que não pode ser explicada – uma espécie de “prêmio” pago ao funcionário público apenas por ser funcionário público – cresceu de 50,7% a 93,5% na esfera federal;
– Para os funcionários estaduais, o prêmio era negativo em 1995 (-1,4%) e passou a 27,8% em 2015. Apenas o funcionário público muncipal tem prêmio negativo (-2,5%), embora ele também tenha crescido;
– Os prêmios salariais existem não apenas no alto escalão, mas em todos os níveis. Para um funcionário de baixa instrução, é de 71% na esfera federal, de 20% na estadual e de 6% na municipal. Para os 10% mais pobres, é de 17% na federal.
Na Alemanha, esse prêmio é de 10%. Na França, de 10,5% – mas os funcionários mais qualificados levam desvantagem (-11,6% para diretores). Na Dinamarca, os funcionários públicos ganham 14% a menos que seus congêneres no setor privado.
Se a situação brasileira não configura privilégio, pense então numa carreira com as seguintes características:
– Estabilidade garantida pela Constituição, mesmo para atividades em que não faz sentido – de bibliotecário a faxineiro;
– Regime previdenciário próprio e generoso na idade e no cálculo das aposentadorias, em especial para policiais, professores e militares – a que diversas categorias se aferraram para melar a reforma da Previdência;
– Penduricalhos salariais de todo tipo, como auxílio-moradia, em especial a juízes e procuradores – dois terços dos juízes (cujo dever exige cumprimento estrito da lei) ganham acima do teto constitucional;
– Isenção, em nome da estabilidade, da tunga mensal do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) – um imposto disfarçado, que apenas os ignorantes insistem em chamar de direito (em 30 anos, a taxa sobre o capital do trabalhador ultrapassa 60%);
– Licenças-prêmios, adicionais e sextas-partes, além dos reajustes salariais periódicos, que elevaram, entre 1995 e 2015, a diferença salarial entre os setores público e privado a níveis inaceitáveis, como revela o estudo de Nemer e Menezes;
– Gratificações por exercício de cargos e funções, tempo de serviço, localização, exposição, viagens, qualificação, bônus de eficiência (quase sempre avaliada pela nota máxima), em boa parte incorporadas aos salários e aposentadorias – elas creceram 6,7% em 2017 e somaram R$ 42,3 bilhões, elevando em 77% o gasto da União com pessoal, segundo publicou o jornal “Folha de S.Paulo”.
Fica difícil encontrar palavras no idioma para definir o que distingue o trabalho nos setores público e privado. Poucas parecem tão adequadas para qualificar a situação do funcionalismo no Brasil quanto “privilégio”.
Fonte: “G1”, 12/03/2018