Ainda no final do século XIX, quando o Ocidente caminhou para o voto universal, o Brasil fez a marcha contrária. Até a década de 1870 o país mantinha um dos sistemas eleitorais mais abertos do mundo – medido em números. Em 1872 votavam no país 13% da população total. Na Espanha, em 1865, apenas 2,6%; Na Áustria, em 1873, foram 6%; na Suécia, em 1872, eram 5,5%; em 1870 na Holanda, 10%; não há estatísticas nacionais para os Estados Unidos, mas na Virgínia escravista votaram 5,1% dos habitantes em 1851; nas Inglaterra, depois de uma reforma, votavam 20% dos habitantes (mas apenas 12% na Escócia).
Ao fim dos anos 1870, no entanto, a média tinha subido para algo em torno de 30% da população – o máximo possível quando não votavam mulheres. Itália e Alemanha, unificadas no período, adotaram o padrão.
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Enquanto isso o Brasil caminhou fundo na direção contrária. Embora a Constituição de 1824 permitisse o voto dos analfabetos, uma série de medidas burocráticas (do tipo obrigar o eleitor a assinar um papel para receber seu título eleitoral) na prática excluiu os analfabetos do eleitorado. Foi um corte brutal: a partir da década de 1880 a proporção de eleitores caiu a um décimo do que era, algo em torno de 1,5% da população. Como, além disso, o ato de votar foi submetido ao controle de funcionários públicos, os resultados do pleito passaram a depender totalmente do governo.
Essa diferença gritante resultou em posições opostas para os conservadores do ocidente e do Brasil. O voto universal masculino permitiu o surgimento de partidos políticos de massa, cuja força estava na sociedade e não no controle dos governos. Um dos primeiros estudiosos desta realidade, Robert Michels, publicou um 1911 um livro intitulado “Os Partidos Políticos”, centrado num estudo sobre o Partido Social Democrata alemão, um dos maiores frutos da nova era. Ele nomeou claramente a força política prejudicada com a mudança:
“Um conservador não obtém representação pela divulgação de suas verdadeiras crenças ou buscando aqueles que pensam como ele. Um partido de aristocratas que quisesse apelar apenas para os membros de sua classe ou para pessoas com interesses econômicos idênticos não elegeria um único membro para o Parlamento. Um candidato conservador que se apresentasse declarando aos eleitores que não os julga capazes de tomar parte ativa na definição dos destinos do país, e que por isso deveriam ser privados do direito do sufrágio, seria um homem de sinceridade incomparável – mas politicamente insano. Se quiser encontrar um caminho para o Parlamento, o conservador só dispõe de um método: descer à arena eleitoral com democrática humildade e tentar convencer os eleitores que tem os mesmos interesses que eles. Assim um aristocrata é obrigado a assegurar sua eleição em nome de um princípio que abjura. Todo seu ser exige autoridade, a manutenção dos sufrágios restritos, a supressão do direito universal de votar, vistos como ameaças a seus privilégios.”
Esta forte indução do sistema eleitoral ao comportamento democrático logo se transformou em argumentação para o debate político. Não demorou muito para um conservador francês, Gustave Le Bon, formular aquela que seria a arma retórica dos conservadores na renovada arena pública do voto universal. Em 1895 ele lançou “A Psicologia das Massas”, uma tentativa de reagir a uma realidade que ele descrevia aterrorizado: “O direito divino das massas está em via de substituir o direito divino dos reis”. Gabriel Cohn comentou a respeito:
“Toda a análise de Le Bon está constituída no sentido de demonstrar o caráter irracional, impulsivo e mesmo negativo na ação das massas. Para ele, pelo mero fato de tomar parte numa multidão organizada um homem desce vários degraus na esfera da civilização. Isolado, ele até poderia ser um indivíduo cultivado; na multidão é um bárbaro – ou seja, uma criatura que age por instinto”.
A distinção entre indivíduos elevados e uma massa ignara foi o substituto possível para os direitos divinos da aristocracia na era do sufrágio universal. Um argumento que funcionou para os conservadores – mas de modo limitado. O argumento favorável ao novo patamar político do sufrágio universal foi formulado na mesma época que o conservador, pelo também francês Émile Durkheim. Novamente Gabriel Cohn mostra a diferença:
“Durkheim formula uma complexa dinâmica entre o Estado, o indivíduo particular e os grupos intermediários que devem se intercalar entre ambos, se o equilíbrio social deve ser alcançado. (…) É apenas pela articulação harmoniosa da tríade Estados / grupos intermediários / indivíduo privado que se atinge um salutar equilíbrio”.
Uma peça fundamental para este salutar equilíbrio era dada pelo que Durkheim definiu como “opinião pública”. Um discípulo brasileiro de Durkheim, Paulo Egydio, já em 1902 relacionou com clareza o papel central da imprensa neste equilíbrio imaginado:
“Quando, em nossas sociedades civilizadas, desenham-se correntes de opinião, pelas quais homens firmes e tenazes arrancam dos parlamentos e dos governos a consagração de leis e decretos, estes fortes movimentos sugestivos não se desenham em praça pública. Os indivíduos sugestionados não se acotovelam, não se veem, não se ouvem; mas leem, cada qual, o mesmo jornal”.
Partidos políticos e imprensa estabeleceram-se como intermediários necessários para produzir um equilíbrio entre indivíduo e o Estado na era do voto universal – através da opinião pública. Quando firmaram-se nesta posição, uma mudança qualitativa fundamental aconteceu. Isidro Molas explica:
“O sufrágio universal, combinado com a liberdade de imprensa e associação, alterará fundamentalmente os regimes liberais e os converterá em democracias políticas. (…) Todos os habitantes convertem-se em cidadãos, com igual possibilidade jurídica de atuar em defesa de seus interesses. Isto trouxe a desigualdade social, cultural e econômica para a agenda política”.
A nova posição de intermediário fundamental na democracia que se criava deu uma escala ainda maior para a imprensa. E, nesta escala, as notícias – isto é, relatos objetivos e verificáveis sobre fatos – ganharam uma importância central. Já na primeira década do século passado os grandes proprietários de veículos criaram protocolos claros sobre os procedimentos profissionais, com o objetivo de transformar a notícia num relato tão isento, fatual e verificável como possível.
Este passou a ser o padrão, e padrão confiável. O relato jornalístico submetido a normas se estendeu depois para outros veículos. O rádio manteve uma dose inicial de fantasia – até que um jovem de 23 anos chamado Orson Welles colocou no ar uma peça de ficção narrando uma invasão marciana em Nova York empregando recursos narrativos da reportagem. O terror real que provocou levou a uma codificação capaz de enquadrar o jornalismo do rádio – e logo da televisão – nas normas do jornal de papel.
Com isso as fake news foram encerradas num espaço marginal. Colunas de fofocas, comentários maldosos, noticiário sem verificação e com algum teor calunioso ou de fantasia se tornaram as marcas da imprensa popular, especialmente dos tabloides, de algumas rádios AM e dos shows populares da televisão. Os conservadores eram obrigados a agir contra sua mais cara crença de superioridade para se elegerem.
A evolução brasileira foi muito tímida em relação ao padrão mundial. A república tornou constitucional a proibição do voto dos analfabetos, e com isso os conservadores locais puderam fazer algo que se tornara institucionalmente vedado a seus pares ocidentais do século passado: apresentar-se politicamente como aristocratas, afrontar a ideia da capacidade política dos eleitores mais pobres – e se eleger dizendo tudo isso.
No que se refere à imprensa, esta possibilidade gerou um incentivo na direção parcialmente contrária àquela do ocidente que implantava a democracia. Havia um incentivo positivo para o caminho do ocidente: o mercado. Mais gente comprava jornal, de modo que os veículos de comunicação passavam a ter receitas que dependiam cada vez mais da sociedade – onde estavam o grosso dos leitores e anunciantes. As vendas crescentes de publicidade e as tiragens cada vez mais elevadas levavam os líderes de circulação das grandes cidades a conter as calúnias e focar na sociedade.
O governo, no entanto, foi um grande incentivador do atraso. Fazia isso fundamentalmente com grossas subvenções de dinheiro público para jornais fieis ao governo – a praxe do jornalismo partidário ocidental do século XIX. Campos Salles, que presidiu o Brasil entre 1898 e 1902, não era apenas um conservador assumido. Governando para impor uma política anticapitalista e impopular, confessou com todas as letras como empregou o dinheiro do governo para obter apoio da imprensa:
“Os governos vêm-se forçados a agir para evitar a ação funesta de dos que tentam criar falsas correntes de opinião. (…) O que usei para dar estímulo e vibração à atuação dos jornalistas, despertar-lhes arrebatamento e patriotismos, foi a ‘auri sacra fames’. Não corrompi a imprensa. (…) Mantenho ainda agora a convicção de legitimidade do ato perante a moral social. Debaixo de instituições que tiram da opinião a origem de todo o poder e com ela devem viver, só resta ao governo o recurso ao jornalismo industrial. No Banco da República encontra-se a conta corrente no qual eram escrituradas essas despesas, aplicadas sem aprovação do Congresso. Se constitui isso um crime eu o confesso”.
Analisando a despudorada confissão, publicada seis anos após o fim do mandato, Júlio Mesquita – dono do jornal moderno que dependia da opinião, dos leitores e anunciantes para viver – descreveria em 1915 o ambiente provocado pelas fake news oficiais:
“Os escribas sem ocupação, mas com o apetite aguçado, oferecem-se aos governos. Os governos aceitam a oferta. Passou a ser uma das instituições oficiais mais queridas e mais aguçadas, mais protegidas como as mais honestas profissões nunca foram, o jornalismo venal, torpemente agressivo, sem freio de qualquer espécie na agressão, indo, com o mesmo frio impudor, da perfídia relativamente inofensiva de uma insinuação velada, até a ofensa profunda e grosseira, pública e atrevida, como um punhado de lama ou uma pedrada na rua, na hora mais clara do dia”.
Sentiu atualidade no ambiente, caro leitor? Antes de chegar a ela, no entanto, é preciso dizer que apenas o mercado incentivou a contenção de fake news no Brasil até 1985 – quando o Brasil adotou o voto universal, com um século de atraso em relação ao mundo.
Só então passaram a valer os incentivos institucionais que transformaram partidos políticos e imprensa livre em sustentáculos da democracia, coincidindo com o fim do regime militar.
Abriu-se uma era de democracia e igualdade nos moldes daquela que predominou no Ocidente durante todo o século XX, o século em que as fake news foram mantidas no submundo. A eleição de Jair Bolsonaro marca uma reversão desta tendência – que não é apenas brasileira. Mas isso é história de outro século, que fica para uma próxima ocasião.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 01/12/2018