Na última década do século passado as imbricações entre democracia, mercado e imprensa atingiram um auge planetário.
Começando pela democracia. A cada gigantesca crise mundial do século passado – as duas guerras mundiais foram as mais agudas – os países que adotavam este sistema de governo saíram vencedores. A cada volta da roda cruenta dos conflitos, número expressivo de derrotados acabavam adotando este regime de governo. Assim aquilo que era uma característica inicialmente limitada à cultura ocidental acabou ganhando um caráter relativamente universal, sendo hoje norma em muitas partes do planeta.
A democracia da segunda metade do século XX foi importante para lidar com uma questão nova e essencial. A bomba atômica lançada em Hiroshima no ano de 1945 trouxe uma mudança milenar. A partir dela alterou-se o próprio sentido de evolução do homem. Desde que a espécie passou a ser designada como “Homo Sapiens”, todo o direcionamento de sua evolução consistiu em empregar a consciência como elemento criador capaz de aumentar as possibilidades de sobreviver dominando a natureza.
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A era iluminista elevou esses processos a sentido da vida. “Natureza” passou a ser definida como um objeto externo, área de domínio da consciência, e por isso desligada de qualquer ligação significativa com o homem produtor e acumulador. Este homem, por sua vez, realizava-se através de domínio cada vez mais autônomo e com poderes cada vez mais amplos – até que a luz da bomba atômica cegou a lógica iluminista.
A partir de 1945 o problema humano deixou de ser aquele de aumentar seus poderes sobre a natureza através da consciência. Passou a ser o de limitar sua capacidade de empregar todos os instrumentos que era capaz de inventar – depois da bomba atômica a destruição total do planeta por obra humana passou da esfera da fantasia para aquela dos fatos.
A constatação desta realidade levou a humanidade a uma nova espécie de conflito. Surgiu a Guerra Fria, um conflito simbólico e ideológico no qual a posse múltipla de armas de destruição em massa – mantido o impedimento de consciência para o emprego delas – evitava as soluções milenares da guerra, da liquidação física dos excedentes produtivos e humanos, o domínio do grupo vencedor sobre o vencido, por cima das pilhas de cadáveres.
Este novo tipo de conflito acabou sendo resolvido de modo muito pacífico (se comparado ao padrão anterior), com a vitória da economia de mercado (com algum planejamento) sobre aquela do planejamento centralizado (e mercado paralelo funcionando fora da lei). Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, sem que fosse disparado um único tiro – e muito menos lançadas armas atômicas – o regime democrático expandiu-se por sobre os escombros da Cortina de Ferro, até se tornar um padrão quase tão universal quanto a economia de mercado.
Esta dupla expansão (democracia e mercado) foi acompanhada por uma evolução de mesmo grau da imprensa. Os jornais eram o único veículo e um negócio pequeno e local no século XIX. As rotativas trouxeram uma base industrial muito maior (além do surgimento da revista) – e o telégrafo formou a primeira rede mundial de transmissão de notícias, o produto que os jornais vendiam a seus leitores.
A partir da metade deste século surgiu a fotografia, que permitiu uma imensa ampliação na disseminação industrial de imagens. No final do século veio a possibilidade de fixar registros vocais em discos, e com ele a indústria da música gravada. Ao longo do século XX o sistema foi ampliado com outras mídias. O cinema permitiu o consumo de imagens em movimento e de cinejornais. O rádio, disseminado a partir da segunda década do século, permitiu uma combinação de notícia e entretenimento para consumo em grande escala. A televisão, novidade da metade do século, criou o consumo caseiro de todas as mídias anteriores.
Todas estas mudanças seguiam a mesma lógica de combinar aumento do público com concentração empresarial. Com a progressiva integração de todos os meios o conjunto acabou sendo denominado indústria cultural. A característica fundamental era a do grande intermediário entre produtores e consumidores: impressoras gigantescas, estúdios de filmagem ou gravação caríssimos, torres de emissoras de rádio ou televisão que raros podiam pagar.
No início do último quarto do século passado aconteceu a integração mundial de todas essas mídias através das comunicações por satélite. Além da simultaneidade mundial de eventos (a Copa do Mundo de futebol de 1970 foi o primeiro a ter cobertura planetária) foi possível multiplica-los a partir das redes mundiais de tevê a cabo, das quais a CNN foi pioneira.
Toda esta concentração em escala mundial aconteceu dentro da regra jurídica da responsabilidade do emissor por todo o conteúdo disseminado. Esta era a maior garantia para que as empresas se empenhassem na busca por um noticiário isento e pela confinação dos fake news a um território cada vez mais obscuro no submundo do sistema. Era também o fundamento da crítica de que a indústria cultural servia apenas aos interesses dos poderosos e do mercado, devendo por isso ser submetida a um controle social.
Bons tempos do século passado.
A base industrial restritiva, fundamento do negócio duplo de vender notícias ao público e público aos anunciantes, montado a partir dos penny papers na década de 1840 e ampliado em escala no século e meio seguintes, ruiu com a internet.
Bem vindos ao século XXI.
Com a rede, o custo de intermediação reduziu-se a zero. Qualquer um passou a ser emissor e receptor de mensagens – e o celular o Grande Instrumento. Com isso a posse de um maquinário de intermediação – seja impressora, estúdio ou antena – tornou-se um elefante branco, um centro de custos caro que competia com outros praticamente gratuitos.
Nesta a realidade deixou também de haver qualquer sentido econômico no investimento em conteúdo. Com ele fornecido de graça, qualquer gasto nesta direção entra diretamente na conta das despesas, sem nenhum retorno direto naquela das receitas. Portanto, a lógica econômica passou a ser aquela de oferecer o máximo de conteúdos por um mínimo de custos.
Fake news servem muito bem a esta lógica.
Tão bem que passaram muito depressa do submundo para o centro do sistema – com uma volta ao passado jurídico do século XIX.
Preocupadas em lançar um máximo de conteúdo em circulação com um mínimo de custos, as grandes empresas do chamado mundo.com voltaram-se para o argumento existente nos primórdios do jornalismo partidário: são apenas canal de transmissão para mensagens produzidas livremente, de modo que não podem ser responsabilizadas juridicamente por aquilo que transmitem.
Como também lhes interessa o máximo de audiência, permitem com velada alegria que a rede tenha se transformado numa gigantesca “Seção Livre” dos tempos do jornalismo partidário. Anônimos são aceitos, calúnias e injúrias alegremente toleradas.
Nada mais parecido com as páginas de insultos de dois séculos atrás que os posts anônimos das redes sociais. A linguagem da calúnia, afinal, é milenar: a palavra pelas costas, a insinuação mentirosa.
O que mudou foi o produtor. A fofoqueira de plantão foi substituída por robôs nos quais se investem muito milhões de dólares – porque são a alma de um novo negócio. Eles são capazes de relacionar dados espalhados em bancos gigantescos e de origem muito diversa entre si e criar uma mensagem feita especialmente para um indivíduo específico, com objetivos de ganho muito claros – para o dono do robô, e não exatamente o destinatário da mensagem.
O trabalho desses robôs é a nova mercadoria – e eles os novos grandes intermediários da comunicação na era da internet. A capacidade de endereçar uma mensagem a um alvo claro é o produto que os detentores de dados sobre usuários e poder computacional de analisa-los vende a anunciantes em busca de consumidores: um agente interessado em mercado para um produto paga para um gigante das redes sociais um valor determinado. E paga porque os robôs destas empresas fazem mais do que organizar as trocas de mensagens dos usuários de suas plataformas.
Neste negócio estes usuários são como escravos: cada mensagem que mandam é conteúdo gratuito produzido, além de fornecer os dados para análise dos robôs – até que o circuito feche com a venda do anúncio e a mensagem paga que aparece para o usuário.
Não é negócio para crianças. Apenas duas empresas foram capazes de desenvolver capacidade de análise de bancos de dados globais. Com isso conseguiram abocanhar uma fatia de 60% de toda a receita de publicidade mundial. Em outras palavras, são donas do negócio de cobrar pelo envio de uma mensagem de um produtor para um consumidor.
Na esteira deste gigantesco negócio de mensagens controladas por inteligência artificial ressurgiu também uma possibilidade política que havia desaparecido com o voto universal, ainda no século XIX: conservadores se elegerem dizendo o que pensam.
A tarefa de tornar majoritária uma posição aristocrática e negadora da capacidade da maioria de se governar sozinha em tese vitoriosa num ambiente de voto universal dependeu essencialmente da aplicação de inteligência artificial à produção de calúnias e injúrias anônimas.
A volta atrás foi multissecular. A definição central de “notícia” é aquela de um relato isento e verificável – feito por um emissor responsável. É fruto da longa construção histórica da era democrática. Tão relevante que parece natural para a imensa maioria dos habitantes do planeta.
Já o “fake news” é falso porque traz um relato que lembra o da notícia, com importantes diferenças. Imita o estilo da notícia, mas traz afirmações que não são sobre fatos. Nunca é isento, e quase sempre ofensivo à honra. É criado por um emissor interessado politicamente em afirmar algo inverificável. Tudo isso com a garantia jurídica da irresponsabilidade (isto é, a impossibilidade do agredido recorrer à justiça) – algo para o que é fundamental a cobertura jurídica das grandes plataformas.
Para que o efeito político conservador fosse atingido este apoio foi além. Grandes bancos de dados pessoais foram vazados para que robôs produzissem algo diferente do direcionamento de anúncios. No lugar de produtos à venda, eles selecionaram perfis vistos como sensíveis a mensagens falsas que minassem a confiança em políticos tarjados como adversários; para outros, que tivessem medo de algo em particular (escuro, desemprego, corrupção, etc.), são enviadas mensagens sobre um político “firme” em suas posições conservadoras e protetor contra este medo; por fim, o cardápio inclui a associação entre minorias e imoralidade ou desvio do normal – com a suposição de que a posição conservadora é a única normal.
Desde 2016 o emprego maciço (e monumentalmente caro, além de exigir cooperação leniente de grandes plataformas) de robôs se transformou em capacidade de gerar poder político para conservadores. A partir da vitória da campanha do Brexit, dependente da Inteligência Artificial conservadora, a disseminação foi rápida. A vitória do tuiteiro/faker Trump foi um grande passo, a Itália e o Brasil seguem o caminho.
Este universo, que vai bem além daquele analisado por Manuel Castells em “Ruptura”, passará a ser a realidade do poder político no Brasil.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 08/12/2018