“O mercado é apenas o lugar em que as pessoas transacionam livremente entre si. Só isso. Mas não é pouco, porque no seu espaço a interação competitiva entre os agentes econômicos equivale a um plebiscito ininterrupto, que não só permite fazer uma apuração, a todos os momentos revista, das preferências dos indivíduos, como lhes dá uma medição quantitativa, tornando possível, por conseguinte, o cálculo racional.” – Roberto Campos.
Lembro-me que um dos primeiros textos de Marx que li quando jovem foram os “Manuscritos econômico-filosóficos” do jovem Hegeliano. E ser Hegeliano, jovem ou velho, é acreditar num salvador ou demiurgo. Todo salvador ou demiurgo precisa de uma contraposição tão ou mais potente do que ele mesmo.
O grande, poderoso e malvado inimigo provocador da existência deste salvador seletivamente benevolente é a liberdade econômica, o direito de propriedade sobre o próprio corpo e tudo mais que for produzido ou obtido pela ação deste próprio corpo humano. Corpos humanos realizando trocas materiais e simbólicas. Livres para escolher entre as possibilidades existentes, mediante suas necessidades, expectativas e perspectivas. O conjunto destas trocas chama-se livre mercado (o que não implica inexistência de regras, de governança) ou capitalismo.
Este ser cruel, frio, criatura humana, mas desumanizadora, é identificado como a fonte de todos os males: “… na situação em progresso da sociedade, o declínio e o empobrecimento do trabalhador são o produto de seu trabalho e da riqueza por ele produzida. A miséria que resulta, portanto, da essência do trabalho hodierno mesmo (…) o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão.” afirmara Marx. A simplificação histórica, econômica e a emotividade são incríveis, mas exatamente por isso funciona.
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Direito de propriedade e direito de defendê-la
O cenário lógico – teoricamente bem formalizado anos depois por Marx e Engels – é de um presente (fim do século XIX) onde a vida da maioria das pessoas havia PIORADO em relação a tempos anteriores à existência da liberdade econômica. O demiurgo-salvador restaurará, sob fundamentos mais sofisticados, o maravilhosamente humanizado passado pré-liberdade econômica. Retornar a processos onde o indivíduo não tinha propriedade, sequer a de seu corpo.
Este cenário construído por Marx – a partir de específicas preferências éticas, morais e históricas – quando criticado à luz dos conhecimentos científicos atuais (século XXI) parece não corresponder aos reais efeitos produzidos pela liberdade econômica sobre a vida das pessoas. Se o movimento geral que se pode derivar do cenário correspondesse à realidade, no presente atual, as condições de vida da maior parte dos Homo sapiens deveria estar pior do que no presente de Marx: a liberdade econômica, o livre mercado, o capitalismo deveriam ter feito nossas vidas empobrecerem em sentido amplo e restrito.
Abaixo apresentarei, sem ter pretensões científicas, alguns fatos que corroboram a tese que afirma que a liberdade econômica, apesar de todas suas falhas e debilidades, ao longo do tempo tem-nos afastado de condições e qualidades de vida que eram PIORES para nossos ancestrais, não melhores. Os efeitos positivos da liberdade econômica não são homogeneamente distribuídos por todos e cada um dos indivíduos de n3ossa espécie ao longo de toda superfície do globo terrestre. No entanto, a vida de todos melhorou. Poderia melhorar mais com a ação do Salvador {de “esquerda” (socialismo, comunismo) ou de “direita” (fascismo, nazismo)}? Não. E a História demonstra isso. É fato.
Nas palavras de Yuval Noah Harari em sua Breve História da Humanidade: “Os últimos 500 anos testemunharam um crescimento fenomenal e sem precedentes do poderio humano. No ano 1500, havia cerca de 500 milhões de Homo sapiens em todo mundo. Hoje, há 7 bilhões. Estima-se que o valor total dos bens e serviços produzidos pela humanidade no ano 1500 era de 250 bilhões de dólares. Hoje, o valor de um ano de produção humana é aproximadamente 60 trilhões de dólares. Em 1500, a humanidade consumia por volta de 13 trilhões de calorias de energia por dia. Hoje, consumimos 1,5 quatrilhão de calorias por dia. (Preste atenção nesses números: a população humana aumentou 14 vezes; a produção, 240 vezes; e o consumo de energia, 115 vezes)”.
1 – Demografia
O gráfico acima apresenta o crescimento mundial da população humana entre 1760 e 2100, relacionando o crescimento com sua respectiva taxa. Apesar de nossa espécie continuar se multiplicando e se distribuindo no espaço terrestre, a partir dos anos 1960 a aceleração com que isso se dá é decrescente na totalidade do planeta.
O gráfico abaixo apresenta a evolução da expectativa que um ser humano tem (em anos) de viver nascendo em determinado ano. Esta é uma medida importante de bem-estar. Quão melhor o modo de vida da comunidade em que um indivíduo nasce, maior é sua expectativa de viver mais. Interessante observar as mudanças produzidas por dois acontecimentos: a revolução industrial e a descoberta/comercialização da penicilina.
2 – Saúde
Paralelamente aos fenômenos apontados acima, a quantidade relativa de crianças que morrem até o primeiro ano de vida caiu significativamente, conforme pode ser observado no gráfico abaixo.
3 – Renda, pobreza, pobreza extrema e miséria
Não existe almoço, serviços de educação e saúde grátis. Alguém sempre paga a conta e este valor pago é apropriado por um sem número de organizações e indivíduos (renda). A valorização desta renda em termos de suficiência (hipo ou hiper) é relativa aos contextos e referências, como qualquer outra avaliação.
Há algum tempo diversas organizações e seus representantes têm estabelecido valores monetários, em dólares norte-americanos, como um ponto de corte para rotular quem obtém uma renda como sendo pobreza ou extrema pobreza. Um parâmetro a ser aplicado globalmente. Se certo ou não, é um parâmetro utilizado por diversos governos como métrica para redistribuição de parte da renda expropriada via tributos.
Nos gráficos que apresentarei abaixo esta linha de corte é o valor US$ 1,80 por dia. Assim, uma pessoa que obtém, numa média temporal, renda diária menor ou igual a este valor é considerado extremamente pobre. Quando, na média, obtiver um centavo de dólar a mais no mínimo, não será considerado como extremamente pobre.
Em 1800, 86,9% da população mundial, numa perspectiva de 2019, encontrava-se abaixo da linha da extrema pobreza. Sendo que a população da China e da Índia (as duas bandas superiores da curva, em vermelho), tinham peso significativo no resultado dado o tamanho de suas populações.
Em 1850, já em plena revolução industrial no norte da Europa, a proporção de pessoas extremamente pobres caiu para 83,8%, sendo que o total de seres humanos no planeta havia aumentado, ou seja, mudanças tecnológicas já aumentavam os recursos disponíveis. O peso da China e da Índia mantém-se.
Um século do fim da revolução industrial, no imediato pós segunda guerra mundial e da revolução da física nuclear, o processo de redução da extrema pobreza continua avançando. Quase a metade da população, graças à produção baseada na liberdade econômica, conseguira superar a linha da extrema pobreza. E a concentração da mesma em certos territórios humanos começa a evidenciar-se. A Europa e Estados Unidos, territórios de hegemonia do livre mercado, propiciam a suas comunidades maior renda. Em termos populacionais, Índia e China mantém-se extremamente pobres.
O ano de 1991 é o ano do fim do maior experimento de engenharia social já feito por um pequeno grupo de humanos sobre milhões de indivíduos. A URSS entra em colapso depois da derrubada do muro de Berlin em 1989. O maior experimento social realizado por um pequeno de humanos sobre milhões de outros membros de sua espécie entra em colapso. A população destes territórios escolhe seguir os ventos da liberdade. Neste ano, a maioria da população do planeta havia superado a linha da extrema pobreza. A concentração da mesma na Ásia e na África, à época seguindo diversos tipos de experimentos de engenharia social à moda soviética, mantém-se.
Em 2018, cerca de 30 anos depois do fim da Guerra Fria, com os avanços tecnológicos propiciados pela liberdade econômica, que garantem aumento da produtividade dos recursos existentes, apenas 10,6% da população mundial encontra-se abaixo da linha da extrema pobreza. Os avanços Asiáticos são evidentes, incluindo China e Índia. Infelizmente, parte significativa dos habitantes da África mantém-se abaixo da extrema pobreza.
Conclusão
Este simples exercício apresenta evidências de que a visão que afirma serem o livre mercado e a liberdade econômica CAUSADORES da pobreza ou da miséria da maioria da espécie humana está equivocada. A História evidencia isso.
O capitalismo e a democracia são imperfeitos (há humanos perfeitos?). Pessoas são intrínseca e extrinsecamente diferentes, felizmente! Nossa diversidade é uma das explicações de nosso sucesso enquanto espécie, vide as demais espécies humanas que extinguimos. Soluções diferentes para problemas similares ou diferentes pipocando em todos os lugares, intercâmbios de soluções e problemas, tudo ao mesmo tempo agora. Isso é insuportável para os humanos que se acreditam capazes de lidar conta de tudo, de dirigir a ferro e fogo a vida de milhões graças a sua superioridade “histórica”, pois é o representante iluminado (consciente) do Salvador (sic).
Tomo emprestadas as seguintes palavras escritas por Roberto Campos em 1996:
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“A pobreza pode assumir vários aspectos: a pobreza ´estrutural´, ou de massa, que até a revolução industrial parecia uma fatalidade humana; a pobreza ‘conjuntural’, que tradicionalmente advinha de desastres climáticos ou de guerras e conflitos políticos, mas que, na civilização moderna, provém de ciclos econômicos que provocam desemprego e recessão; e o ‘desvalimento’, ou seja, a situação dos que não têm capacidade de trabalho por deficiências físicas ou mentais.
“No tocante à questão global da pobreza, há um conflito histórico entre duas visões do mundo que se apresentam em várias formas e graus: o liberalismo e o dirigismo.
“Os liberais insistem em SEPARAR DUAS questões que são habitualmente confundidas no debate corrente: a cura da pobreza e o igualitarismo. A extinção da pobreza absoluta é realizável e deve ser um objetivo social. O igualitarismo é utópico, e TODAS as tentativas de alcança-lo geraram ineficiência ou despotismo.
“Os liberais certamente lutarão pelo alívio da pobreza; mas rejeitam o igualitarismo socialista. Em outras palavras, consideram a ´equidade´ desejável e a ´igualdade´ impossível”.