Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional em Harvard, identificou um “trilema”, isto é, um problema que só admite a conciliação de dois entre três objetivos. Não podemos ter, simultaneamente, soberania nacional, democracia e hiperglobalização. É preciso escolher duas dessas coisas, descartando uma terceira, assegura-nos, para concluir que a renúncia à hiperglobalização seria a única forma de triunfar frente ao desafio da direita populista. O “trilema” existe, de fato, mas que tenha solução mais sutil, menos angulosa que a de Rodrick.
A opção por democracia mais hiperglobalização, às custas da soberania nacional, orientou o Ocidente desde o encerramento da Guerra Fria. O célebre “fim da História”, de Francis Fukuyama, foi uma síntese triunfalista dessa opção, que sofreu o golpe econômico da grande depressão de 2008-2009 e da ascensão populista iniciada em 2016. O Brexit, Donald Trump, Marine Le Pen, a direita nacionalista alemã e a crise separatista catalã evidenciam um perigoso deslocamento dos EUA e da Europa, as placas tectônicas principais da ordem global. Seguir o curso, pura e simplesmente, implica colocar em risco tanto a globalização quanto a democracia.
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No Fórum de Davos, Xi Jinping explicitou a alternativa chinesa: soberania nacional mais hiperglobalização, sem democracia. A via chinesa inspira líderes autoritários na Europa (Rússia, Turquia), na Ásia (Vietnã), na América Latina (Cuba, Venezuela) e na África. Efetivamente, desde a queda do Muro de Berlim, a utopia socialista praticamente deixou a cena, substituída por variantes do capitalismo de Estado.
Rodrik não é exatamente original quando prega uma combinação de democracia com soberania nacional, às expensas da globalização. Sua saída envolve “uma disposição de atacar muitas das vacas sagradas do establishment — especialmente a liberdade de ação dada às instituições financeiras, o viés em favor de políticas de austeridade, a visão negativa do papel do governo na economia, a movimentação irrestrita de capitais pelo mundo e a fetichização do comércio internacional”. Quase se ouvem, atrás de sua sentença, as vozes de Bernie Sanders, o candidato democrata derrotado por Hillary Clinton nas primárias americanas, e de Jeremy Corbyn, o líder esquerdista atual do Partido Trabalhista britânico.
O “viés em favor de políticas de austeridade” manifesta-se na Europa, como reflexo das posições alemãs, mas não nos EUA. A referência é uma forma de ocultar a crise do Welfare State, que provoca desequilíbrios orçamentários insustentáveis. As políticas de bem-estar social foram contaminadas pela acumulação de privilégios corporativos e curvaram-se sob o peso do envelhecimento demográfico. A necessidade de reinventar o Welfare State não deriva da ideologia, mas de impasses estruturais.
Já a menção à “fetichização do comércio internacional” revela a inclinação da “nova esquerda” a reproduzir o discurso do nacionalismo de direita. Sanders e Trump investiram juntos contra o projeto da Parceria Transpacífica e contra o Nafta. Na campanha do plebiscito, Corbyn declarou-se protocolarmente contra o Brexit mas, nos escassos eventos que promoveu, fez da União Europeia o alvo preferencial de seu bombardeio. A direita populista responsabiliza os “estrangeiros” pela estagnação da renda da classe média tradicional. A esquerda emite a mesma mensagem, trocando palavras: no lugar de “China”, “México” ou “imigrantes”, aponta o dedo acusador para o “neoliberalismo”, o “globalismo” ou o “livre comércio”.
A solução de Rodrik equivale a ingressar numa cápsula do tempo e retornar várias décadas atrás, até a era gloriosa das políticas social-democratas tradicionais. A viagem, porém, exige tanto a interrupção (ou reversão) da onda de inovações tecnológicas quanto a construção de sólidas barreiras protecionistas para conter os fluxos de mercadorias e capitais. No fundo, Sanders e Corbyn só poderiam aplicar as políticas protecionistas que advogam numa Fortaleza América ou numa Fortaleza Europa. A opção fundamentalista pela soberania nacional é a ponte que interliga a direita populista a uma “nova esquerda” sem rumo.
No tripé de Rodrik, ao menos do ponto de vista do Ocidente, só a democracia deveria ser classificada como um bem inegociável. Fora da caixa estreita da ideologia, existem inúmeros compromissos legítimos entre globalização e soberania nacional. O ultraliberalismo não funciona nas democracias de massas, como se sabe há quase um século. A inovação tecnológica acelerada, fonte principal da crise da classe média nos EUA e na Europa, solicita contrapesos equilibradores, na forma de serviços públicos e gastos sociais. O Welfare State precisa ser reinventado (ou inventado pela primeira vez, no caso da China), não descartado como relíquia ou anacronismo.
Nada disso será feito por uma esquerda que cultua o Estado-Nação, entoando hinos nostálgicos a uma “idade de ouro” perdida no horizonte dos mitos. O nacionalismo é a trincheira da direita. Quando a esquerda aprenderá essa verdade óbvia?
Fonte: “O Globo”, 30/11/2017
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