Passados 30 anos da atual Constituição, a eleição de Jair Bolsonaro demonstrou que o recente ciclo social-democrata se esgotou, levando consigo o PSDB e, em boa medida, o Partido dos Trabalhadores, parceiros no casamento litigioso que buscou produzir uma gigantesca rede de proteção social na sequência do ciclo pró-crescimento iniciado em 1964, com pontos a favor e contra e, o que é pior, ao lado do maior esquema de corrupção de que se tem notícia.
O modelo seguido visou a aumentar desbragadamente, na União, o número dos beneficiários de programas específicos de transferências, como o BPC, que cobre idosos pobres e deficientes físicos, o abono salarial (antigo abono do PIS-PASEP), sem falar no mais famoso Bolsa Família e nos benefícios de um salário mínimo (SM) a cargo do INSS, esses virtuais transferências diretas de renda. Tais programas, no conjunto, devem abarcar, hoje, mais de metade da população brasileira, embora sem a garantia de que a parcela efetivamente mais pobre esteja ali incluída. Além disso, firmou-se a noção equivocada de que o benefício mínimo, basicamente o SM, deve ser corrigido acima da inflação, algo cuja autorização se renova de tempos em tempos por lei ordinária.
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Do ponto de vista financeiro, o impacto dessa rede de proteção até agora foi brutal. Entre 1987 e 2017, os gastos nesse item aumentaram R$ 368,2 bilhões, a preços de 2017, ou 5,6% do PIB. Diante da existência de itens tão rígidos como esse, Paulo Guedes, o novo ministro da Economia, deve ter tomado o maior susto, ao começar a olhar com lupa as contas da União. De passagem, porque isso corresponde à boa parte do valor anual do atual deficit público, problema econômico número um do país.
Outra faceta que os críticos podem deduzir dessa rede de proteção é o cheiro de uma brutal compra implícita de votos junto à população menos favorecida, que deve ter ocorrido no período, e que deve explicar por que Lula, por mais que cometa delitos até ser encarcerado em Curitiba, continue tão popular nas áreas mais pobres do país.
Incapaz de capturar os corações e mentes dos eleitores, o PSDB tem registrado um crescente fracasso eleitoral, embora tivesse a seu favor, e em adição, o sucesso do Plano Real, que claramente contribuiu para a reeleição de FHC. Mas como não conseguiu ficar à margem da onda de corrupção promovida pelo petismo e por seus aliados, ao se ver abalado pela Lava-Jato e pela falta de renovação de suas lideranças, não soube (ou não pôde) encontrar um caminho dentro da onda de mudança pela qual o país está passando e que culminou com a eleição do candidato do PSL. O único remanescente de destaque do partido em extinção a se manter no poder é João Doria que, em que pese sua competência para entender o desgaste de seus pares, quase perdeu a eleição de São Paulo, reduto sagrado dos tucanos, para um desconhecido político do PSB.
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Já o PT, com seu líder máximo por trás das grades, terá de se mudar para o Nordeste para garimpar votos indispensáveis à sua sobrevivência, onde a citada virtual compra de votos deve ainda produzir efeitos favoráveis para seus candidatos por algum tempo. (Ressalvo, aqui, o brilhante desempenho de um governador petista fora da curva, Wellington Dias, governador do Piauí, único caso de um governador eleito quatro vezes em primeiro turno, a meu ver, um dos mais competentes dirigentes da atual safra).
Paulo Guedes já deve ter percebido, também, a derrocada dos investimentos públicos que resultou da estratégia petista-peessedebista. Só no Orçamento da União, houve queda de R$ 156,1 bilhões (ou de 2,4% do PIB) entre 1987 e 2017. Somando o investimento de todos os níveis/esferas de governo, a queda entre 1975 e 2017 foi de nada menos que 8,8% do PIB, um óbvio absurdo. Daí, a destruição da infraestrutura e os graves problemas decorrentes disso.
Para completar o quadro, falta registrar a explosão mais recente dos gastos com a previdência dos servidores públicos que, de 2006 a 2017, subiram 93% acima da inflação no conjunto dos estados e 46% na União, enquanto o PIB crescia apenas 24%.
Ao fim e ao cabo, fica a constatação dramática do brutal e pouco compressível deficit do setor público em todas as esferas de governo, que resultou de tudo isso, e da perda de capacidade de crescimento da economia e dos empregos que o governo Bolsonaro herdará e terá de equacionar. Isso leva à conclusão de que algo novo e de forte impacto terá de ser feito para recolocar o país nos trilhos, preservando ao máximo a renda dos menos favorecidos, tema para as próximas colunas.
Fonte: “Correio Braziliense”, 30/10/2018