O início do governo Bolsonaro pegou de surpresa até mesmo os mais pessimistas. Ninguém imaginou que pudesse haver tanto desgoverno em tão pouco tempo de governo. O presidente sofre de uma falta de foco crônica e está demasiadamente aberto às influências dos grupos com os quais se relaciona: olavistas, militares e o círculo familiar, todos tentando exercer a sua dose de influência ao mesmo tempo. O presidente tem um conhecimento muito raso sobre a realidade em que vivemos, sobre o macroambiente no qual estamos inseridos e sobre como nossa marcante desigualdade nos impede de alcançar um nível mínimo de coesão social que permita que cheguemos a um acordo coletivo sobre o formato e o alcance das reformas que tanto necessitamos. Seria função do presidente tomar a dianteira do processo de comunicação e servir como agente aglutinador de interesses tão divergentes. Mas como convencer-nos da necessidade das reformas se ele mesmo foi contra qualquer tentativa reformista nos seus quase trinta anos de vida legislativa?
Além disso, o presidente decidiu por exercer um modelo político no qual não forma uma base partidária única para todos os temas e tenta organizar tais bases tema a tema, o que torna a tarefa de negociação política um trabalho extremamente árduo e volumoso, muito além da capacidade do homem nomeado para exercer tal tarefa, o Ministro-Chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni. Para piorar, o presidente insiste em um modelo de excessiva centralização do poder, consultando em pequena medida os donos das pastas e fazendo uso excessivo de decretos, o que o torna um déspota que está se isolando cada vez mais nos labirintos de Brasília. Ao tentar agradar a todos, Bolsonaro não agrada a ninguém. Desmanda, desmente e desqualifica os homens que deveria blindar, apoiar e promover. O recente decreto das armas e os dizeres controversos sobre a ingerência estatal nas empresas públicas (Banco do Brasil, Petrobrás, etc) exemplificam a mentalidade centralizadora do presidente e aos poucos enfraquece sua base de ministros. O brilhantismo técnico das pastas vai sucumbir diante da total falta de habilidade política por parte do presidente.
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Também não ajuda em nada a velocidade com a qual o presidente queima capital político com temas secundários e puramente ideológicos, parte de uma agenda exclusivamente sua. Mesmo dentro da sua base de apoiadores, começa a despontar uma massa de insatisfeitos que aos poucos passarão a ser neutros e na sequência passarão a ser contrários aos posicionamentos polêmicos do presidente, assim como pudemos assistir em governos anteriores que colocaram em marcha planos e idéias muito distintas daquelas vendidas no processo eleitoral. Aos poucos Bolsonaro se materializa como um autocrata e populista de direita, tão radical quanto aqueles com os quais se aproxima ao redor do mundo, passando por Estados Unidos, Israel, Hungria, etc. Em algum momento a opinião pública também se questionará sobre as infinitas complicações presentes na esfera familiar do presidente e com alto potencial destruidor, como é o caso da investigação do MP-RJ sobre o potencial envolvimento de Flávio Bolsonaro em um suposto esquema de lavagem de dinheiro que vigorava na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Os próximos capítulos dessa trama certamente levarão ao escrutínio das relações entre os agentes envolvidos e têm potencial para criar um problema adicional para o próprio presidente.
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Todo esse imbróglio na arena política afeta diretamente a arena econômica. Diante de tamanha dispersão e polaridade, será impossível criar um ambiente sério para que possamos discutir com profundidade as escolhas que teremos que fazer como sociedade. O governo ainda conta com certo “conforto” macroeconômico, diferente de outros governos que já tiveram que enfrentar temas críticos logo nos primeiros dias de seus respectivos mandatos, mas tal cenário não terá duração infinita. Frente a um cenário de tanta estagnação, começam a surgir “tentadoras” idéias para algum tipo de estímulo pelo lado fiscal, remédio que sabemos causar um alívio no curto prazo, mas com tendência a agravar a doença no médio prazo. Reforçando a debilidade do presidente, surge na Câmara dos Deputados um texto alternativo da Reforma da Previdência, sabe-se lá com que nível de rigor técnico, se é que algum. O fato é que, na ausência de um estadista presente a atuante, abre-se espaço para um congresso oportunista que acabará por nos governar por meio de uma espécie de parlamentarismo informal. Os ataques constantes à imprensa só contribuem para acentuar seu isolamento político e expõe ainda mais uma tendência à censura que nenhuma ala da sociedade brasileira pode tolerar. Pouco a pouco Bolsonaro se afasta dos ideais liberais, se é que um dia os teve por convicção e não por conveniência.
Caso as reformas não ganhem tração, não demorará até que nossos fundamentos econômicos comecem a ruir um a um, fazendo com que o governo deixe de ser viável tanto na esfera política quanto na esfera econômica. Obviamente a formação de uma nova crise político-institucional não nos ajudaria em nada nesse momento, mas talvez possa despontar como a contingência histórica necessária para que uma “primavera liberal” deixe de ser uma tese, um sonho, e se transforme numa opção necessária e fundamental para o salvamento da economia. Assim como em outras sociedades e em outros momentos históricos, uma crise interna pode ser o agente catalizador de um novo paradigma. O tempo nos fará essa revelação.