Dentre as grandes transformações pelas quais o mundo passa, talvez a mais relevante no longo prazo seja o desenrolar do conflito entre EUA e China. A disputa vai além da recente guerra comercial, fruto, na verdade, de uma visão equivocada do presidente sobre possíveis soluções para o déficit comercial. Vai além, também, do domínio da tecnologia do 5G, base da internet das coisas que vem pela frente. Essas são questões importantes, mas pano de fundo para a estratégia de avanço geopolítico que a China pretende fazer nos próximos anos.
Para alcançar o domínio que os EUA têm hoje no mundo, será necessário que o renmimbi chinês se transforme em uma moeda plenamente conversível e segura para os investidores, algo que ela está longe de ser hoje. De fato, do ponto de vista de reservas internacionais, cerca de 65% delas está em dólar enquanto apenas 1,2% está em renmimbi. Da mesma forma, cerca de 40% da dívida mundial é em dólar e número semelhante é o peso do dólar na composição dos direitos especiais de saque, ativo internacional de reserva do FMI usado para crises de liquidez nos países membros. Esse peso compõe o que o ex-primeiro ministro Giscard D´Estaign chamou de “privilégio exorbitante”.
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Mas parte desse domínio do dólar tem a ver com o tamanho da economia americana no passado e o peso geopolítico que o país teve, atingindo o auge na década de 90. De lá para cá, não apenas a economia americana perdeu espaço relativo na economia mundial como dá sinais de endividamento crescente que poderá fazer com que se perca confiança na moeda americana nos próximos anos. Trump não parece perceber isso ao estimular ainda mais o déficit público com a reforma tributária e os aumentos esperados de gastos militares em um momento de forte aceleração dos gastos com previdência em um país em envelhecimento.
Mas a diminuição da importância do dólar teria que acontecer concomitantemente ao surgimento de alguma outra moeda. O euro é uma opção arriscada, pois a base de formação da moeda única europeia é politicamente frágil como se viu nas seguidas crises pós-2008. Em que pese as dificuldades políticas, o tamanho da economia europeia forçosamente coloca o euro como moeda relevante.
Resta então o renmimbi como opção possível. A China tem ambições “imperiais” conhecidas e que tem sido avançadas através do Made in China 2025, a criação de bancos de investimentos na Ásia fora da alçada das instituições ocidentais e a estratégia do “One Belt, One Road” para aumentar a presença chinesa na Ásia através de investimentos em infraestrutura. Parece inevitável ver a presença americana na Ásia diminuir continuamente nos próximos anos em detrimento dos chineses. Por enquanto, parte desse investimento ainda é feito em dólar, pois falta a confiança na economia chinesa para se usar de forma mais intensa o renmimbi nessas transações.
Talvez esse processo de tentativa de internacionalização da moeda tenha começado quando os chineses criaram, em 2018, contratos de compra de outro e petróleo em renmimbi. Quem vender petróleo para os chineses poderá trocar os renmimbis por ouro em Hong Kong ou Shangai. Como nos lembram Charles Gave e Louis-Vincent Gave em seu livro, Clash of Empires: Currencies and Power in a Multipolar World, é primeira vez desde a II Guerra Mundial que se pode comercializar petróleo por ouro sem se precisar de dólar. E dada a vontade de Trump de se ausentar cada vez mais do cenário internacional e entrar em conflito com diversos países produtores de petróleo que dependem hoje de seu maior importador, a China, pode ser que vejamos o renmimbi ganhar espaço no futuro. Os autores acima lembram ainda que os chineses podem estar tentando dar sinais de confiança à moeda chinesa ao colocar certa paridade de sua moeda com o ouro.
A dificuldade é acreditar que os chineses continuarão a depender do ouro, uma relíquia bárbara, para trazer confiança a sua moeda. Essa estratégia tem pouco espaço para progredir, o que nos faz crer que os chineses podem avançar em parte a presença de sua moeda nas transações internacionais, mas dificilmente terão o peso que o dólar tem.
Para isso acontecer vão ter que dar o passo de convertibilidade plena do renmimbi, tendência essa revertida em 2015 quando os chineses perceberam o que a falta de confiança pode fazer a uma moeda. Liberar totalmente o renmimbi hoje pode fazer com que haja fuga maciça de capitais, pois há desconfiança do grau de interferência do governo chinês sobre sua moeda. O exemplo de 2015 é sinal de que o controle político pode machucar a confiança em uma moeda.
A questão relevante, assim, é saber se os chineses querem dar o passo adicional de maior liberdade no mercado cambial. No limite, significa dizer dar mais liberdade como um todo à economia, simbolizando aqui que o governo interferira cada vez menos neste como em outros mercados. Mas parece não ser o caso.
Em outro livro excepcional de Nicholas Lardy (The State Strikes Back: the End of Economic Reform in China?) o que se vê é uma China cada vez mais dependente das empresas estatais como objetivo de controle político de sua economia e Xi Jinping tem dado sinais de manutenção desse padrão. Ao mesmo tempo, a feroz competição entre as províncias chinesas por espaço dentro do partido tem gerado pressão sobre os bancos estatais locais para financiar projetos que geram resultados de curto prazo, mas financeiramente ruins no longo prazo. Hegemonia política do partido não parece casar com a eficiência econômica de um país que pretende dominar o mundo.
Essa China que geopoliticamente quer ter sua moeda em pé de igualdade com uma economia americana que diminui de tamanho parece viver um paradoxo: tem presença cada vez mais forte na economia mundial, mas sua moeda enfrenta resistências porque falta confiança na própria economia. E esse pode ser um elemento a barrar as pretensões chinesas nos próximos anos.
No final, parece que teremos três moedas dominantes: dólar, euro e renmimbi, cada uma com suas fragilidades internas que impedirão um domínio completo de apenas uma delas, confirmando previsão de Barry Einchegreen em 2011. Resta saber se as diferenças geopolíticas e econômicas entre EUA e China não resvalarão em algo mais grave. Afinal, é a primeira vez que os EUA são desafiados em sua hegemonia por um país de fora de sua órbita de domínio.
Fonte: “Blog Sérgio Vale, na Exame”, 06/05/2019