Desde a redemocratização, o Brasil teve seis presidentes. Dois deles foram reeleitos e governaram por oito anos. Dois sofreram impeachment, e os dois outros eram vices que completaram seus mandatos. O que distingue os dois que conduziram o governo até o fim e obtiveram repetido sucesso nas urnas dos demais?
Responder a essa questão de modo preciso é essencial para entender o tipo de desafio que o próximo presidente – ao que tudo indica, Jair Bolsonaro – enfrentará a partir do próximo dia 1º de janeiro, quando tomará posse. Infelizmente, a maioria dos brasileiros crê numa resposta que, se não inteiramente errada, é parcial. Costumam omitir a principal característica comum aos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso.
Inflamados pela onda (necessária) de combate à corrupção e pela Operação Lava Jato, uns dirão que o que uniu os governos tanto do PT quanto do PSDB foi a podridão das relações entre o setor público e o privado, o fisiologismo e o “toma-lá-dá-cá” que contaminam Brasília. É esse o motivo que compele a maioria dos eleitores a votar em Bolsonaro no próximo domingo.
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Outros, movidos pelo combate (também necessário) à desigualdade, afirmarão que o êxito se deveu à capacidade de incluir na sociedade e no mercado formal os milhões de brasileiros que carecem de condições mínimas de vida, saúde, educação ou direitos humanos. Preferirão até um governo corrupto do PT a um que esqueça os pobres em nome das demandas do “mercado”, como afirmam ter sido o do PSDB, ou a Bolsonaro – a quem, além disso, atribuem o risco de escalada autoritária.
Não há, obviamente, motivo para os combates à corrupção ou à desigualdade serem antagônicos, muito menos para qualquer um deles ameaçar a democracia. Mas é em torno desse tipo de falsa dicotomia que a sociedade brasileira se polarizou entre “esquerda” e “direita”. O tribalismo, forma natural de organização das sociedades, empobrece o debate sobre nossos desafios concretos.
É correto enxergar problemas na corrupção, na desigualdade ou nas ameaças e deficiências de nossas instituições. Tudo isso é problemático mesmo. Mas a maioria dos brasileiros esquece as duas características essenciais que desde sempre determinam o fracasso ou sucesso dos nossos governos, anteriores e necessárias a qualquer tipo de solução para todas essas questões.
A primeira delas é que somos um país gigantesco. Em países dessa natureza, nenhuma autoridade central tem poderes plenos. Sempre é necessário algum tipo de acerto com poderes locais e com grupos organizados em torno de interesses econômicos ou corporativos. A política do “toma-lá-dá-cá”, em que espaço e cargos no governo são cedidos em troca de apoio no Legislativo, resulta em parte daí.
Nenhum presidente pode arriscar a rebeldia dos governadores se quiser levar adiante seus projetos no Congresso. A crença de que será possível “reinventar” a política sem concessões a grupos de interesse ou à revelia da organização tradicional que rege o apoio no Legislativo não passa de fantasia. Nem toda concessão implica corrupção. Ao contrário, negociar e saber ceder é da natureza da atividade política.
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Tanto o impeachment de Fernando Collor quanto o de Dilma Rousseff derivaram da inabilidade política de ambos para negociar e obter apoio no Congresso. Mesmo aqueles que pregam “golpes” ou “atalhos institucionais”, e ameçam a saúde da nossa democracia, deveriam entender que eles exigem amplas articulações nacionais. Nem a violência prescinde da política ou a elimina – deriva daí seu custo altíssimo a quem corre esse tipo de risco.
A segunda característica para o êxito de um governante, aquela que une de fato as personalidades de Lula e FHC, é justamente a habilidade política e capacidade de articulação. Os métodos de ambos para obter resultados podem ser criticados. Mas os dois souberam levar projetos adiante, venceram resistências e compuseram alianças produtivas. Collor e Dilma não, por isso caíram.
Numa estrutura de poder como a brasileira, tal capacidade é mais importante que o programa de governo em si, mais importante que fantasias sobre “esquerda” ou “direita”, mais importante que ideais de pureza moral. Sem talento político, de nada adianta ser honesto nem dispor dos melhores economistas, especialistas em Previdência, tributos, educação, saúde ou meio ambiente.
Sem capacidade de articulação para pôr projetos em marcha, eles não passam de um compêndio de boas (ou más) intenções. É por isso que votamos para cargos políticos, não técnicos. É por isso que é bobagem falar em “nova” ou “velha” política. A política é sempre a mesma, não muda há milênios: a arte de persuadir, negociar e governar. Competência nessa arte é o principal requisito a exigir dos líderes.
A esta altura, ninguém que mantenha um mínimo de pé na realidade, em vez de se informar por meio das mentiras do WhatsApp, tem muita dúvida sobre os principais desafios que aguardam o próximo presidente. Será necessário desatar o nó górdio da crise fiscal sem descuidar de programas sociais e das atividades essenciais do Estado, em especial segurança, saúde e educação.
Assim como no caso dos últimos seis presidentes, é apenas e tão-somente a habilidade política para unir o país em torno de um projeto consistente diante desse desafio que definirá se o próximo terá sucesso. Não seu discurso, nem suas ideias, nem seu partido.
Fonte: “G1”, 25/10/2018
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