“No Brasil, empresa privada é aquela que é controlada pelo governo, e empresa pública é aquela que ninguém controla.” – Roberto Campos (1917-2001)
Meu saudoso Professor Campos tinha razão. O Brasil é um país em que campeiam solene e impunemente o furor arrecadador, o cartório regulatório e as descomunais estatais. Basta um rápido passeio na Internet para perceber isso.
A primeira e despretensiosa pesquisa nos informa que existem, atualmente, nada menos do que 146 empresas estatais no âmbito federal (até pouco tempo eram 149, sendo que 3 foram incorporadas pela Petrobras). No nível estadual – e a lista está, seguramente, incompleta – há, apenas para ficarmos com os cinco estados que a página consultada registra, 8 no Ceará, 5 no Espírito Santo, 13 em Minas, 2 no Paraná, 2 no Rio de Janeiro, 22 no Rio Grande do Sul, 7 no Rio Grande do Norte, 3 em Santa Catarina e 9 em São Paulo. (Para ver essa consulta, clique aqui). Pela dificuldade de encontrar uma informação completa e confiável, deixemos de lado as municipais, sem nos esquecermos, no entanto, de que há no Brasil 5.564 prefeituras, uma exorbitância que faz com que, no dizer dos críticos, o país não caiba dentro de seus municípios. É ou não uma quantidade de causar perplexidade, sabendo que a Constituição Federal estabelece o respeito à economia de mercado e aos direitos de propriedade como preceitos explícitos?
Segundo o Departamento de Coordenação e Controle das Empresas Estatais (Dest) do Ministério do Planejamento, em 1980, tempo em que o nacionalismo dos governos militares criou estatais aos borbotões, o país tinha 213 dessas empresas, passando esse número, após um breve período em que ameaçou vicejar entre nós um rasgo de racionalidade, para 186 em 1990 e para 103 em 2000. A partir de 2003, no entanto, a ideologia (e hoje, como podemos acompanhar diariamente, também as facilidades para a corrupção que as estatais oferecem) returbinou a criação e, em alguns casos, a recriação desses monstrengos, até atingirem a abundante quantidade atual.
O motivo que me levou a escolher o tema das estatais para este artigo é que o presidente Michel Temer tem afirmado recentemente que é necessário privatizar “tudo o que for possível”. É o caso de dizer, como meu pai gostava de fazê-lo, que Deus o ajude! No entanto – acrescento – para que tal aconteça, é preciso vontade e esforço.
Há que se estabelecer, para início de conversa, que há uma diferença clara entre o que é possível e o que seria de fato necessário – ou seja, entre aquilo que os obscuros meandros políticos permitirem privatizar e a simples e sumária privatização de todas as estatais das três esferas de governo, sem alarde, sem leilões e seus martelos e sem qualquer tipo de favorecimento, daqueles que são do conhecimento de todos e que caracterizam o capitalismo de compadres que infecta nossas instituições. Sim, porque em uma sociedade de pessoas livres, a quem Hayek atribuiria as palavras gregas Nomos e Cosmos, o número certo de empresas estatais deve ser zero!
A expressão “empresa estatal” já abriga por si só um conflito, uma contradição, uma incoerência, porque se quisermos falar de uma empresa de verdade, definida – de acordo com a concepção da Escola Austríaca -, como a aglutinação de fatores de produção com o fim de executar uma dada atividade empreendedora, ela não pode ser estatal e, se considerarmos uma organização econômica constituída pelo Estado para explorar a mesma atividade, essa organização pode ser qualquer outra coisa, mas nunca será uma empresa. A própria etimologia da palavra empresa vem em nosso auxílio: do latim prehensus, que significa empreendimento. Em outras palavras, em uma economia verdadeiramente de mercado, em que a atividade empreendedora seja sua força motriz, não há qualquer espaço para empresas do Estado, pois não existe algo como “empreendedorismo de Estado”.
É evidente – para sermos pragmáticos – que quando o presidente Temer se refere a privatizar “tudo o que for possível”, temos que apoiá-lo sem restrições, já que, nesse caso, não há possibilidade de escolha efetiva entre o possível e o ideal. Somos forçados a nos contentar com o primeiro, caso não queiramos permanecer ad aeternum nas nuvens etéreas e escapadiças do ideal. Por outro lado, não escapam motivos para arguir se a declaração do presidente expressa de fato sua disposição ou se é apenas um fogo de artifício para encantar a plateia.
Por que é tão difícil privatizar empresas do Estado, já que é mais do que sabido que os critérios de decisão guiados pela ação livre individual nos mercados são sobejamente superiores aos ditos critérios políticos e que são os cidadãos, sejam consumidores ou produtores, os que mais se beneficiam com esses critérios? Não há necessidade de coçarmos a cabeça antes de responder: primeiro, porque empresas estatais representam uma porta permanentemente aberta para políticos indicarem protegidos ou vassalos para ocuparem cargos em sua direção, como atesta a velha tradição patrimonialista; segundo, porque é comum a mistura fatal de ideologia e nacionalismo, uma combinação que é sempre avessa a privatizar e que se disfarça sob muitos pretextos, tão numerosos quanto resistentes à boa lógica; e terceiro, porque existem teorias econômicas equivocadas que defendem que o desenvolvimento de economias atrasadas só pode acontecer se for “induzido” pelo Estado, sem se importarem com o fato histórico de que as economias desenvolvidas de hoje eram as economias atrasadas de ontem e que somente lograram se desenvolver porque não se valeram daquela pretensa indução e, portanto, porque as deixaram operar sem empresas estatais.
Um dos pretextos para justificar a existência dessas empresas é que elas seriam “patrimônio público”. Mentira! A expressão propriedade pública significa, pura e simplesmente, que aqueles determinados funcionários públicos que estão eventualmente no poder são aqueles que a “possuem” e, mesmo assim, temporariamente, especialmente os que ocupam postos mais elevados na hierarquia política e que a dirigem de acordo com seus interesses individuais. Ou seja, o “público” não possui qualquer fração da propriedade. Tente, por exemplo, entrar no prédio de uma estatal qualquer, sem se identificar na portaria, ser fotografado e ter que colar na lapela do seu blazer aquele adesivo onde está escrito “visitante”. Logo, você não é dono dela.
Outro, típico da mistura do nacionalismo xenófobo com a teoria marxista da exploração, é de que essas empresas seriam garantia de “soberania nacional”. Pipocas! Em casos extremos de ameaças estrangeiras, cuja probabilidade de ocorrência é praticamente zero, bastaria ocupá-las com as forças armadas nacionais. Logo, elas nada têm a ver com soberania, mas com subordinação dos que pagam tributos aos que os recolhem enquanto estão no poder, com a servidão do indivíduo ao Estado. Como dizia Roberto Campos em suas sempre fundamentadas críticas à Petrobras, “soberania é panela cheia” e, no caso do petróleo, é tanque cheio com combustível de qualidade a preço de mercado. Quanto à “exploração”, é fácil perceber que os verdadeiros explorados, no caso dessa empresa, têm sido os consumidores brasileiros.
Um terceiro é de que apenas o Estado e, em consequência, tais companhias seriam capazes de prover os chamados bens públicos e atuar em monopólios naturais. Conversa fiada! A simples existência de bens públicos e monopólios naturais é, no mínimo, incerta e duvidosa. Como Rothbard argumentou em Man, Economy and State (Los Angeles: Nash, 2ª ed., 1970. p. 883-90): “como um ‘coletivo’ pode querer, pensar ou agir? Somente indivíduos fazem essas coisas”. A rigor, as características neoclássicas dos chamados “bens púbicos” estão baseadas ou em hipóteses falsas ou em simplificações excessivas e inaceitáveis e, mesmo se essas hipóteses e simplificações estivessem corretas, elas não seriam suficientes para justificar a existência de monopólios impostos pelo Estado à força, nem mesmo no caso conhecido na literatura como monopólios naturais, pois até em uma situação hipotética em que circunstâncias especiais fizessem com que apenas uma empresa operasse em um determinado mercado, isto não necessariamente configuraria um “monopólio”, porque monopólio, no dizer de Rothbard (p. 620) – e repleto de bom senso – é “uma denominação que só faz sentido se preços monopolísticos forem implantados”. E não pode haver dúvida de que “todos os preços em um livre mercado, com liberdade de entrada, são competitivos”. Trocando em miúdos, isso significa que somente a intervenção estatal pode gerar preços monopolísticos.
Por fim, há o argumento conhecido como teoria dos espaços vazios, segundo o qual determinadas atividades não despertariam o interesse de empresas privadas, cabendo então ao Estado criar empresas para explorá-las. Conversa para boi dormir! Como a teoria austríaca do valor demonstra, o valor é criado pela utilidade marginal e, logo, pela demanda e, portanto, só poderia existir um “espaço vazio” onde houvesse demanda não atendida, possibilidade que varia inversamente com o grau de liberdade de entrada e saída de empresas nos mercados.
Ou seja, não há necessidade de empresas do Estado para executar atividades que seguramente serão desempenhadas por empreendedores privados, a partir do momento em que as demandas forem identificadas.
Não é a presença do Estado que se faz necessária, mas simplesmente ausência de barreiras à entrada e saída. Basta olharmos para os países desenvolvidos e sua história econômica para nos certificarmos dessa afirmativa.
Naturalmente, não podemos deixar de levar em conta que a lógica econômica e a lógica política são naturalmente diferentes, embora ambas sejam categorias praxiológicas, enquadradas no conceito amplo de ação humana, que estuda as escolhas que os agentes devem fazer, dados os meios de que dispõem, para atingirem os fins a que se propõem, ao longo do tempo e em condições de incerteza. Na economia, esses objetivos são a procura pelo lucro e pela maior satisfação; na política, a busca pelo poder – ou por mais poder.
Portanto, o escopo político da ação humana é, pura e simplesmente, o poder. Se é assim, que político, então, está disposto a abrir mão da possibilidade de indicar pessoas de sua confiança para ocuparem cargos em estatais, mantendo-as sob sua influência nas barganhas políticas e financeiras ou, caso seja corrupto, utilizando essas empresas como fonte de enriquecimento, apenas porque se forem privatizadas os consumidores sairão ganhando? Convenhamos ser muito difícil encontrarmos pessoas assim tão altruístas no mundo político, você não concorda? Este é o ponto chave para apoiarmos Temer quando fala em privatizar o possível.
Privatizar não significa apenas aumentar as escolhas dos consumidores, mas diminuir ou cortar as escolhas dos políticos; não exprime tão somente diminuir o desperdício de gastos públicos, mas aumentar os recursos em posse do setor privado, que são muito mais produtivos; não quer dizer simplesmente melhorar as finanças públicas, mas piorar as dos políticos e seus grupos de pressão; não denota meramente diminuir a corrupção, mas aumentar as liberdades individuais.
Parece que nos últimos tempos a demanda por maior liberdade econômica vem aumentando no Brasil, acredito que como consequência de tantos escândalos de corrupção envolvendo o Estado, suas empresas e seus grupos de interesses. É claro que se trata de um fato auspicioso, mas o dever de todos os que defendem essa liberdade é – para usar uma gíria – não deixar a peteca cair. Isso significa que não basta expulsar alguns do poder apenas para colocar outros em seu lugar, porque afinal estamos tratando de agentes políticos, que sempre estão ávidos por poder. Esse alerta me parece válido: tiramos o PT do poder, mas isso foi apenas o primeiro passo e o seguinte tem que ser bastante incisivo.
Referi-me anteriormente à dúvida sobre as reais intenções de Temer quanto a privatizar estatais e ela está fundamentada em três constatações interligadas: a primeira é que sabemos das dificuldades políticas para se levar a cabo tal empreitada; a segunda é que o presidente precisa assegurar apoio no Congresso para garantir governabilidade, o que implica, em nosso sistema político ensandecido, em concessões de diversos tipos; e a terceira é que algumas de suas atitudes recentes mostram-se seguramente contrárias ao seu discurso correto, que mescla austeridade com defesa do livre mercado. Citarei duas: seu recuo, diante das pressões do Senado, da disposição de não estabelecer limites ao capital externo nas empresas de aviação civil e o verdadeiro pacote de bondades anunciado em 29 de junho, com reajustes no programa Bolsa Família e nos salários dos servidores federais, “caridade” essa que remontará a R$ 125,4 bilhões em 2017, uma cifra incompatível com os discursos de austeridade do ministro Meirelles, que anunciara com grande estardalhaço ser de R$ 150 bilhões o déficit do governo federal, o que exigiria medidas fortes de austeridade.
Mas que austeridade é essa, que denuncia um rombo de tamanho porte, pedindo o sacrifício de todos, para alguns dias depois ceder às tendências acomodatícias e abrir as torneiras por onde corre o dinheiro dos pagadores de tributos?
Posto isso, temos todo o direito de duvidar se Temer estará tão disposto a privatizar como tenta nos fazer crer.
Onde quero chegar? Quero simplesmente – e para finalizar – chamar a atenção para a necessidade de, aproveitando a maré liberalizante que vem crescendo, pressionarmos para limitar o poder dos políticos sobre nossas vidas. Ou fazemos isso ou estaremos nos condenando à roda do “mais do mesmo”. Nesse caso, de nada adiantará trocar o vermelho pelo azul na política, porque nossa economia permanecerá borrada na aquarela do estatismo.
Empresas estatais – queiram ou não alguns de seus ingênuos defensores – significam maior poder nas mãos da classe política. Além disso, há que se considerar o fato de que empresas privadas, em mercados sem barreiras legais à entrada e saída, sempre são mais eficientes, do ponto de vista econômico, do que as aberrações conhecidas como “empresas” estatais.
Há, portanto, sobejos argumentos políticos e econômicos em favor da privatização dessas empresas, mas há também o argumento moral, que não pode ser esquecido: Estado e coerção formam um par perfeito e coerção significa ausência de liberdade ou restrições à liberdade. Muitos não conseguem ver isso, mas tolher a liberdade dos outros é um grave vício moral, que produz efeitos danosos e que se estendem às gerações futuras, como no caso, por exemplo, da dívida interna.
A hora de privatizar sem medo pode ter chegado. Que tal lutarmos sem tréguas para que não seja novamente desperdiçada? Gente, olho vivo no Temer!
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