É o cenário de um país em guerra — com o detalhe de que não há guerra. A hiperinflação mede-se em taxas de seis ou sete algarismos. Destruída a moeda, a economia regride ao estágio do escambo. Doentes, inclusive crianças, morrem em hospitais devastados. São, até agora, quatro milhões de refugiados. A “revolução bolivariana” destruiu a Venezuela. Pensando bem, há uma guerra, do regime contra o povo. Mas, contrariando os prognósticos, Nicolás Maduro não cai. Por quê?
A sobrevivência do regime desmonta as duas crenças do pensamento mágico que orientaram, pendularmente, as análises e a ação dos diplomatas. A primeira deve ser batizada como Mito da Negociação; a segunda, como Utopia da Insurreição.
Nos últimos anos, a Costa Rica, o Vaticano e o ex-primeiro-ministro espanhol Zapatero ofereceram-se como mediadores de uma transição negociada. Todas as tentativas fracassaram. A negociação tem um pré-requisito de princípio: o reconhecimento da legitimidade da outra parte. Se é esse o ponto de partida, os polos em conflito podem aceitar vitórias parciais, trocadas por concessões substantivas. No caso venezuelano, o Mito da Negociação simula a existência da condição prévia ausente.
O chavismo, um movimento revolucionário, jamais admitiu a legitimidade da oposição, definida como coleção de “inimigos do povo”. Do outro lado, o núcleo duro oposicionista nunca aceitou o chavismo como componente incontornável da paisagem política venezuelana. Daí que, nos diversos simulacros de negociação, os polos opostos sempre exigiram o impossível: a supressão do outro como candidato a exercer o poder.
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O sonho insurrecional apossou-se dos espíritos meses atrás. Nutriu-se do enrijecimento autoritário do regime, que dissolveu as esperanças numa transição eleitoral, e ganhou impulso na esteira das iniciativas dos EUA rumo à mudança de regime, às quais aderiram os governos da Colômbia e do Brasil. Contudo, o regime resistiu tanto ao “cerco humanitário” de 23 de fevereiro quanto ao ensaio de levante militar de 30 de abril. Então, a Utopia da Insurreição cedeu lugar à expectativa de uma improvável intervenção militar americana.
Desde a Revolução Francesa de 1789, a utopia da insurreição popular aninha-se na alma das sociedades contemporâneas. No registro histórico, porém, as insurreições vitoriosas são eventos muito raros, excepcionais. A Revolução de Fevereiro, na Rússia de 1917, é uma dessas singularidades (mas não a de Outubro, um levante militar dirigido pelos bolcheviques). A conta pode incluir a Revolução Iraniana de 1989 e as revoluções populares de 1989 no Leste Europeu. Fora disso, o cortejo de insucessos estende-se por um século, das tentativas insurrecionais comunistas na Alemanha de 1919 à Primavera Árabe de 2011.
A aplicação da força organizada quase sempre frustra a insurreição. O regime de Maduro conserva o controle sobre as Forças Armadas e, crucialmente, mantém um apoio popular minoritário que não é desprezível. Além disso, tem os suportes vitais de Cuba, da Rússia e da China. Nesse sentido preciso, parece-se um pouco com o regime sírio de Bashar al-Assad, que resistiu à avalanche de uma guerra civil de sete anos.
Do Mito da Negociação à Utopia da Insurreição, e de volta à partida. O pêndulo estéril ingressou em novo ciclo, com o teatro das negociações na Noruega. Sem alternativas, representantes de Juan Guaidó sentaram-se à mesa, apenas para rejeitar a cínica proposta do regime de eleições legislativas, o que implica aceitar a continuidade do mandato de Maduro e colocar em risco a maioria oposicionista na Assembleia Nacional. O chavismo ganha tempo, obtém fiapos de legitimidade diplomática, desmoraliza uma oposição ferida pelos insucessos recentes.
Maduro não é eterno. Será destronado pelo imponderável, como um golpe da cúpula militar corrompida ou uma desastrosa intervenção americana? FHC sugere o exercício da “paciência histórica”, enquanto uma nação impaciente se desfaz na guerra cotidiana pela sobrevivência. Melhor exercitar a criatividade estratégica, para além dos limites do pensamento mágico.
Fonte: “O Globo”, 01/07/2019