É natural que tenhamos preferências, seja por economistas ou por quaisquer outros profissionais, nos campos da ciência, da música, da literatura, do jornalismo, do cinema, do teatro, da pintura, dos esportes, etc. No entanto, preferir um determinado autor a outro não deve implicar que esse “outro” não tenha talento ou valor e – mais importante – que há necessariamente que se escolher entre um e outro. E digo mais: em todos esses campos, cada economista, músico, escritor, jornalista, ator ou pintor sempre é precedido por um ou mais pares: Mozart, por Bach; Utrillo, por Daubigny; Bill Evans, por Chopin; Poisson, por Pitágoras; Newton, por Kepler; Einstein, por Newton e assim por diante.
Isso significa, simplesmente, que o conhecimento é um processo cumulativo, um estoque que se renova permanentemente pela infusão das novidades que surgem com o passar do tempo. Na economia, as coisas não são diferentes, o que não quer dizer que todos os economistas de hoje influenciados pelos mesmos autores do passado tenham necessariamente que concordar entre si. Jean Baptiste Say, por exemplo, foi lido por Keynes e Hayek, mas ambos interpretaram sua “lei” de forma radicalmente diferente; as leituras que Marx e John Stuart Mill fizeram de Adam Smith foram drasticamente díspares.
Indo agora ao ponto: por que deveríamos esperar que, no âmbito de uma escola de pensamento econômico, todos têm que concordar em todos os temas estudados pela escola? Acreditar que deve ser assim é pura ingenuidade, é desconhecer a tautologia de que cada indivíduo é único.
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O objetivo deste pequeno artigo é o de apresentar – embora resumidamente – argumentos que acredito sejam suficientes para negar que, no âmbito da Escola Austríaca, existiria uma “escolha” entre Mises e Hayek e que, ao endossar o pensamento de um deles, estaríamos obrigados a rejeitar o do outro. Pelo contrário, ao invés de serem mutuamente excludentes, os dois grandes economistas são complementares, respeitando-se a individualidade de cada um deles. Como o espaço é curto, farei isso listando as semelhanças e diferenças entre ambos, prometendo para um futuro próximo um artigo acadêmico tratando desse falso (a meu ver) dilema com maior densidade. E o farei em cinco tópicos, a saber: (1) Introdução: Um Grito Silencioso; (2) A Questão do Método: Duas (boas) Cabeças, Duas Sentenças; (3) Filosofia Política: “Social-democrata” é a Vovozinha!; (4) Economia: Esforços Positivos ou Heurística Negativa? e (5) Conclusão: Reciprocamente Excludentes ou Complementares?
(1) Introdução: Um Grito Silencioso
O oximoro “grito silencioso” ilustra bem a falsidade da escolha, uma vez que Misesianos”, “Hayekianos”, Kirznerianos, Rothbardianos, Lachmannianos, etc, são meta etiquetas, rótulos para caracterizar as contribuições desses autores. Temos necessariamente que levar em conta em que época e circunstâncias cada autor escreveu, a que público se dirigiu e que mensagem desejava comunicar. Ao fazermos isso, estaremos sendo prudentes e evitando fazer barulho por nada.
A teoria econômica, seja da Escola Austríaca ou de qualquer outra, não é um corpo unificado de pensamento, um sistema fechado, mas um sistema aberto, uma ordem espontânea. Tem razão o historiador britânico Quentin Skinner quando se refere a essa suposta necessidade de plena concordância entre os autores como a mitologia da coerência.
Na mesma linha, o Professor Peter Boettke sugere que a Economia Austríaca deve ser tratada como um programa de pesquisas progressivo:
“Da forma como a enxergo, a Economia Austríaca contemporânea é um programa de pesquisas progressivo e não um corpo resolvido de pensamento e esse é o único caminho a seguir – o que significa que não devemos nos preocupar com a fidelidade às obras de qualquer pensador passado ou presente e sim em apenas buscar a verdade tal como a enxergarmos, acharmos e tomarmos ideias produtivas onde quer que possamos encontrá-las”. [i]
Essa visão contrapõe-se à de Hans Hermann Hoppe:
“Minha tese é que a maior proeminência obtida por Hayek tem pouco ou nada a ver com suas ideias econômicas. Afinal, a diferença entre as ideias puramente econômicas de Mises e Hayek é mínima. Com efeito, a maioria das ideias econômicas associadas a Hayek foram originadas por Mises, e apenas este fato já faria com que Mises estivesse em um patamar superior ao de Hayek como economista”. [sic]
“Logo, o que realmente explica a maior proeminência de Hayek é a sua obra publicada principalmente na segunda metade de sua vida profissional, no campo da Filosofia Política — e é nesse campo que a diferença entre Hayek e Mises torna-se realmente notável, para não dizer impressionante”.[ii]
Trata-se de uma visão radical e a meu ver prejudicial para a Escola Austríaca e creio que possa começar a ser refutada com duas perguntas simples: é proibido a um ex-aluno suplantar seu ex-professor? Um professor tem a obrigação de não ser superado por seu ex-aluno?
A respeito dessa controvérsia, o Professor Israel Kirzner, sábia e equilibradamente, chegou a advertir, em 1996, que:
“Se desejamos preservar e construir sobre o legado Misesiano, não devemos gerar confusão (tanto entre austríacos quanto entre seus oponentes), exagerando as diferenças entre Mises e Hayek, até o ponto em que as percepções compartilhadas centralmente por ambos ficam perigosamente obscurecidas”.[iii]
2. A Questão do Método: Duas (boas) Cabeças, Duas Sentenças
Não podemos deixar de considerar que Mises foi influenciado pelo neokantismo, em suas principais vertentes alemãs, a saber: a Escola de Baden, fundamentada na axiologia e no culturalismo, com ênfase na lógica e na ciência. (Rickert, Lask, Radbruch e Max Mayer) e a Escola de Marburgo, já no início do século XX, que rejeitava o naturalismo de Helmholtz e afirmava a importância do método transcendental. (Hermann Cohen e Paul Natorp). A Escola de Marburgo procurava resgatar o Kant da razão-pura e das leis lógicas, enquanto que a Escola de Baden acentuava a razão-prática e as leis axiológicas e rejeitava o formalismo, em que o pensamento cria por si só o seu objeto. O neokantismo surgiu em oposição ao idealismo de Hegel e ao positivismo científico de Comte e J. S. Mill. Mises, porém, também era simpático ao utilitarismo de Bentham (o que levou até mesmo Rothbard, que adotava postura mais aristotélica, a criticá-lo).
Já Hayek ao enfatizar a distinção entre conhecimento teórico e conhecimento das circunstâncias de tempo e lugar, separando o conhecimento subjetivo e a realidade que esse conhecimento precisa considerar, introduziu o falibilismo no conhecimento dos agentes, pelo qual as explicações econômicas devem ser guiadas pelo falsificacionismo de natureza popperiana. Sendo assim, sustenta que a ciência econômica não deve se resumir à lógica das escolhas (ação humana) baseada somente nas decisões subjetivas dos agentes, como na Praxiologia de Mises.Em suascríticas à Epistemologia de Mises, foi também influenciado pelo utilitarismo de Mill, assim como pelo ceticismo de David Hume (1711-1776), o evolucionismo de Edmund Burke (1729-1797) e a fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), um discípulo aplicado de Franz Brentano (1838-1917).
Para Hayek, os agentes econômicos erram e a teoria econômica deve investigar como a alocação de recursos depende do processo de correção desses erros, enquanto que, para Mises, a ciência econômica deve buscar a validade de seus resultados puramente pelo método dedutivo, a partir do exame das implicações lógicas do conceito seminal de ação humana proposital e voluntária. Sendo assim, segundo alguns, a proposta de Hayek de se buscar formular teorias sobre aprendizado entraria em conflito com a abordagem Misesiana.
Ocorre, porém, que o estudo da ação humana proposital se limita ao exame da lógica de cada indivíduo, ao passo que a ênfase na garantia da existência de coordenação nos mercados depende de considerações de natureza intersubjetiva. Por causa disso, escreveu Fabio Barbieri:
“O confinamento da análise à pura lógica da escolha levou o referido grupo de economistas austríacos [George Selgin e Joseph Salerno, entre outros] a rejeitar a contribuição de Hayek ao debate, refugiando-se em uma postura por vezes denominada subjetivismo radical”.(p. 207)
Isso originou um debate interno sobre as contribuições de Mises e Hayek ao problema do cálculo: Yeager e Kirzner concordando com as objeções de Hayek ao socialismo e Salerno, Rothbard, Hoppe e Herbener sustentando que a questão do cálculo proposta por Mises é diferente do problema do conhecimento de Hayek, que teria se desviado do argumento Misesiano. O repúdio à tese de Hayek deriva, no fundo, de sua crença no realismo e falibilismo popperiano e mais certas considerações sobre a complexidade dos fenômenos sociais, mas, como conclui Barbieri:
“É curioso notar que a descrição do funcionamento dos mercados não diverge significativamente daquela apresentada por Hayek. Apenas as conseqüências metodológicas da contribuição deste último são impalatáveis para os defensores da metodologia de Mises”. [iv]
A leitura atenta e o bom senso mostram que essa “escolha” não existe e que a expressão correta deve ser “Mises e Hayek”, pelo menos até que algum austríaco absolutamente genial consiga separar a questão do conhecimento proposta por Hayek da sua autêntica origem, que está, sem qualquer dúvida, em Mises. Mas por que, até o presente, ninguém foi capaz de demonstrar irrefutavelmente qualquer conflito entre esses dois grandes pensadores? A resposta que me parece adequada é: porque todas as tentativas de fazer isso caíram no mesmo erro, o de repetir inconsciente ou explicitamente argumentos do próprio Hayek consentâneos com a visão de Mises, mas como se fossem fundamentações opostas a eles.
Sobre a Praxiologia , Hayek diz, numa entrevista:
“O que eu vejo agora de forma mais clara é o problema de minha relação com Mises, que começou com meu artigo de 1937 sobre Economia e Conhecimento, o qual foi uma tentativa de persuadir o próprio Mises de que, quando ele afirmava que a teoria de mercado era a priori, ele estava errado; porque o que era a priori era apenas a lógica da ação individual, mas no momento em que você passa disso para a interação de muitas pessoas, você entra no campo empírico.” [v]
Nessas palavras ele não cita textualmente a Praxiologia, mas, em todas as entrevistas sobre isso, deixou claro que seu desacordo com Mises era sobre a ideia de que a teoria de mercadoera a priori. Segundo Hayek, apenas a lógica da ação individualé a priori, pois a lógica pura da escolha não é válida quando analisamos processos sociais e, por isso, eles deixariam de ser a priori.
Cumpre ressaltar que o desacordo de Hayek não é com a Praxiologia em si, tanto que em um prefácio a dois artigos de Rothbard sobre a metodologia da economia ele escreveu:
“Os problemas examinados sem dúvida não perderam nada de sua importância. Toda pessoa educada terá que, nos próximos anos, aprender a compreender o que é Praxiologia e quais são seus métodos particulares. No tempo de Mises, era necessário explicar e justificar seu caráter em um exame crítico de todas as abordagens alternativas. Mas, enquanto a consciência dessa nova visão se espalha, serão muito necessárias exposições breves e simples de suas essências. O professor Rothbard mostra grande habilidade em expô-las de forma concisa e em uma linguagem mais familiar para a presente geração.” [vi]
Portanto, parece que ele concordava com a Praxiologia, apesar dos desacordos com Mises sobre o status da lógica da ação, que ele cria ser analítica e não sintética. Hayek acreditava, tal como Menger, que a utilidade marginal é derivada a priori, a partir das próprias noções de ação e intencionalidade. Em vários artigos essenciais, desenvolveu um método de análise das ciências sociais com base na intencionalidade da ação e no subjetivismo.
Mas isso permite afirmar que Hayek era um praxiologista? A resposta depende de como se define “Praxiologia“: se for como um método das ciências sociais que se baseia na análise das ações sob a ótica da intencionalidade e que se funda no individualismo metodológico, podemos dizer que Hayek era, sim, um praxiologista.
Qual era, então, o desacordo de Hayek quanto ao a priori do Mises? Basicamente, Hayek parte da constatação de que a Lógica Pura da Escolha diz respeito apenas à forma da ação do indivíduo e não ao conhecimento individualque gera a ação e que os fenômenos sociais são dinâmicos, desenvolvem-se no decorrer do tempo real.
Com o tempo, as pessoas aprendem com outras pessoas, as quais, por sua vez, aprendem por meio de objetos externos e transmitem esse conhecimento para outras pessoas, e assim sucessivamente. Em consequência, o “conteúdo” da ação — o conhecimento –, muda constantemente e isso se refletirá na própria ação dos indivíduos. Entretanto, a mudança do conteúdo da ação não pode ser determinada a priori, pois não sabemos o conhecimento que alguém terá no futuro, nem se ou de que forma aprenderá com os próprios erros.
Assim sendo, quando desenvolvemos uma teoria de processos sociais, devemos fazer hipóteses sobre como a mudança do conhecimento se dará. Mas isso depende apenas de evidências empíricas, ou seja, que podem ser provadas como verdadeiras ou falsas no futuro, e não se derivam diretamente da lógica da escolha ou Praxiologia. Por isso, a teoria econômica não é inteiramente a priori em Hayek.
Ele também explica isso em The Meaning of Competition:
“… Quando lidamos, no entanto, com uma situação na qual várias pessoas estão tentando executar os seus planos separados, não podemos mais assumir que os dados são os mesmos para todas as mentes planejadoras.”
Em suma, Hayek reafirmou o básico: o contexto é importante!Se imaginarmos as explicações econômicas como uma tesoura, Hayek afirmou que uma lâmina era a pura lógica da escolha e a outra as circunstâncias dessa escolha. A explicação constitui a lógica da análise situacional. Como Hayek não relaxou o pressuposto do interesse público, sua análise teve que se concentrar na aprendizagem.
3. Filosofia Política: “Social-democrata” é a Vovozinha!
Aqui é preciso verificar em que contextos, para que públicos e em que circunstâncias temporais cada um deles escreveu. Hayek usou argumentos para lidar com o debate do cálculo em língua inglesa na década de 1930 diferentes dos que Mises usou nos debates em língua alemã, na década de 1920. E Mises não questionou os fins dos socialistas, pois o socialismo significava, no momento de seu artigo original (1920), a racionalização da produção através da abolição da propriedade privada. Então, ele simplesmente perguntou se a abolição da propriedade privada era coerente com a racionalização da produção e demonstrou que não era.
A Filosofia Política de Mises
Muito se escreveu sobre a economia de Mises. De sua epistemologia, talvez ainda mais, seja como dogma ou como escândalo. Mas de sua Filosofia Política, ao contrário de Hayek, não se escreveu tanto, pelo menos como um assunto tão importante quanto os outros.
A Filosofia Política de Mises deve ser entendida dentro das circunstâncias de sua vida e, a partir daí, sob a hipótese psicológica que o explica como um herdeiro do mandato iluminista de salvar o mundo profeticamente pela razão. Isso explica seu estilo e também é uma solução para debates infinitos sobre o quão racionalista ele era. [vii]
Mises se declara um utilitarista. Em Ação Humana, Teoria e História, Liberalismo e em Fundamentos Últimos da Ciência Econômkica, ele diz claramente que a propriedade, as liberdades individuais e o sistema democrático de governo são meios para alcançar a cooperação social. Mas não são circunstanciais, ou relativos e com lugar ou tempo concretos. Se quisermos alcançar uma expansão da cooperação social, esses e apenas esses são os meios, pois os outros levam à autarquia, à violência e à guerra.
Seu “utilitarismo” é, por conseguinte, um utilitarismo de princípios, com um imperativo categórico por trás, que pode ser reconhecido implicitamente pela carga axiológica que dá à “civilização ocidental” e a base conceitual de seu utilitarismo é a noção de cooperação social. Por um lado, critica os valores absolutos como negativos para a coexistência sob cooperação social (onde existem valores diferentes), mas por outro lado os afirma implicitamente em sua defesa da “civilização”.
Mises tem duas características: (1ª) o estilo “quase-profético-racionalista”, onde levanta apaixonadamente a teoria em abstrato, porque é nela que confia; (2ª) (mais importante) o quadro epistemológico por trás disso. Para ele, uma ciência universal da ação (Praxiologia) dá sentido aos fenômenos históricos complexos e é natural que tenha reservado implicitamente o mesmo papel para a filosofia.
Cabe à razão humana descobrir as normas, que são sempre os meios adequados para a expansão da cooperação social. Mas o que é essa cooperação social? Para ele, é o intercâmbio de bens e serviços no âmbito da divisão do trabalho. Claro, como toda definição em ciências sociais, isso tem seus limites, pois Mises pensa na realidade, em termos ideais, na livre troca de bens e serviços sob a divisão do trabalho e na presença da propriedade privada dos meios de produção. A cooperação social é, então, o meio humano para minimizar o problema da escassez.
Pode-se tentar separar alguns temas importantes na obra de Mises.
(a) Estado, Nação e Governo
Mises é internacionalista. O estado é o aparelho social de força e compulsão, cujo objetivo é proteger os direitos individuais, enquanto o governo é o conjunto de pessoas encarregadas de cumprir a função de estado. Os estados não passam de unidades administrativas e as fronteiras não mais do que divisões do trabalho administrativo e não se deve impedir a entrada e saída de capital e pessoas. No estado-nação contemporâneo, a autoridade política legítima tem, talvez, não como ” essência “, mas como “acidente próprio“ o uso da força.
(b) Propriedade
Enxerga-a como indispensável para o cálculo econômico e um dos melhores exemplos de norma necessária para o progresso e expansão da cooperação social e, logo, tem uma “função social“ e faz parte do núcleo central (por presença ou ausência) da análise econômica. Evidentemente, não tem nada a ver com interesses de classes ou com qualquer outra função que o marxismo lhe atribui e é um requisito para que a taxa de crescimento do capital aumente mais rapidamente do que a da população. Tem também uma função epistemológica: a obra Ação Humana, ao analisar a cooperação social, tem três partes: com mercado (presença de propriedade privada); com mercado sob intervenção parcial do governo na propriedade; e com ausência do mercado, como no socialismo.
A teoria econômica de Mises é diretamente institucional, ao permitir dizer: “para toda a cooperação social, se houver um mercado, então…”, e “para toda a cooperação social, se não houver mercado, então …”
(c) Paz
A paz não é um desideratum, um mero “dever ser” de cooperação social, mas faz parte do “ser“ de cooperação social na presença de propriedade privada. Paz e comércio são fatores civilizadores,nãocomosimples relação econômica entre divisão do trabalho e maior produtividade, mas como uma filosofia política: o avanço da paz implica relações comerciais e, portanto, um círculo virtuoso. Logo, Mises afirmava que a crença de que a guerra seria “civilizadora” só contribui para acelerar a morte da civilização.
(d) Democracia
A abordagem de Mises para a democracia é mais direta do que a de Hayek, mas não por isso menos profunda. Podemos basear sua visão nos seguintes pontos: o argumento em favor da democracia está claramente relacionado à paz social e à divisão do trabalho; uma consciência muito clara de que a força é inútil contra as opiniões da maioria; a sustentação da idéia de que um sistema político não pode sobreviver sem o apoio “da maioria” ou o “consenso” dos governados, embora a opinião da maioria não justifique por si só a legitimidade de um governo; crítica dura a nacionalismos e militarismos de todos os sinais e cores.
(e) Nacionalismo, imperialismo e colonialismo
Foi em critico forte do estado-nação, seja liberal/iluminista ou nacionalista fascista; sustentava que fronteiras nacionais devem ser só divisões administrativas abertas à livre circulação de capital e trabalho (a Europa de seu tempo não o ouviu e menos ainda a União Européia de hoje); defendia que não deve haver diferença entre comércio externo e doméstico, nem devem existir alfândegas, direitos aduaneiros, de importação ou de exportação, ou qualquer coisa que impeça essa livre circulação; rejeitava totalmente o “direito de conquista”, pois em sua visão a civilização é incompatível com o avanço de um país sobre o outro pela força e, se há algum direito que tenha a ver com a força, é o direito à autodefesa; por fim, refutava o imperialismo, a ideia generalizada de que o capitalismo se expandiu graças à mais-valia extraída das colônias e o mercantilismo moderno, com a ideia de proteção a mercados.
(f) A crise dos partidos políticos
Em Liberalismo, de 1927 (bem antes, portanto, de Hayek e Buchanan) apontou o problema básico dos sistemas legislativos submetidos aos partidos políticos, que representam interesses setoriais e corporativos. Ao defenderem interesses de grupos, só podem conduzir ao fracasso da democracia, já que o estado acaba por ser o distribuidor discricionário de bens públicos escassos, através de todos os tipos de benefícios, regulamentos e medidas intervencionistas contrários à igualdade perante a lei, o livre acesso à propriedade e, obviamente, a única coisa que conseguem é beneficiar uns à custa de outros. Obviamente, rejeitou o carimbo do liberalismo como sendo “o partido do capital“, mas, ao contrário de Hayek, não continuou a tentar resolver o problema e não propôs soluções específicas, talvez porque pensasse que a solução já fora proposta no livro de 1927.
Sua frase “uma democracia sem liberalismo é uma forma vazia de significado” é profética nas circunstâncias atuais, em que as democracias supostamente mais consolidadas, na Europa e nos EUA, enfrentam problemas permanentes de representação e corrupção. Mises é um exemplo de alguém “politicamente incorreto“: sindicatos são parte do corporativismo fascista e intervencionista praticado por partidos políticos que defendem interesses de grupos e funcionam como um estado dentro de outro estado, porque o direito de greve, entendido como o direito de impedir que outros trabalhem, foi legalmente consolidado, por influência da ideologia marxista que o apresenta como a única defesa contra a suposta “exploração capitalista”.
A Filosofia Política de Hayek
Nas décadas seguintes às suas disputas com Keynes e os socialistas de mercado, Hayek aprofundou-se nas condições institucionais que permitiriam o tipo de aprendizagem mútua necessária para a cooperação social sob a divisão do trabalho e a complexa coordenação que constitui uma economia moderna. Sustentou que os mecanismos de aprendizagem da política e da economia são totalmente diferentes e, para estudar a política a partir da perspectiva do problema do conhecimento, é necessário que o teórico examine, em contextos diferentes de propriedade, não os preços, lucros e perdas, mas, em vez disso, problemas como votação, campanhas, burocracia, orçamentos, etc. O aprendizado sem dúvida ocorre, mas o que é aprendido, como é aprendido e quem está aprendendo é significativamente diferente na política e no mercado.
Para que a intervenção política seja “racional”, deve alcançar o que o mercado alcançaria se operasse de forma ideal. Devemos ver algum tipo de processo de “mão invisível“ na política, que transforma as preferências dos eleitores em resultados políticos que atendam ao melhor interesse da sociedade como um todo? Em resposta, lista uma história trágica de fracassos de governos e de consequências indesejáveis na política pública.
Hayek procurou, também, demonstrar que o interesse público é algo que não pode ser realizado, porque os atores econômicos não possuem o conhecimento necessário para persegui-lo, mesmo que queiram fazê-lo. Sendo assim, o liberalismo fornece um ambiente institucional que desencadeia os poderes criativos dos indivíduos e seu desafio foi demonstrar que uma ordem liberal fornece um quadro estável e previsível para a atividade econômica e permite adaptações e ajustes em circunstâncias sob mudanças permanentes, sendo este ambiente de aprendizagem a fonte das melhorias. Adam Smith argumentou que os maiores avanços na capacidade produtiva da humanidade são devidos à expansão e aprimoramento cada vez maiores na divisão do trabalho, mas Hayek simplesmente apontou cirurgicamente que a divisão do trabalho implica também uma divisão do conhecimento.
Contrariamente ao que se costuma afirmar, Hayek nunca abandonou a economia, mas simplesmente retornou às suas raízes: a Faculdade de Direito da Universidade de Viena, um dos principais centros de teoria econômica de seu tempo – em que a teoria econômica se preocupava com o quadro institucional – e começou sua carreira trabalhando em problemas econômicos técnicos. Infelizmente, à medida que as teorias dos economistas evoluíram na primeira metade do século XX, o cenário institucional foi sendo esquecido e eles caíram em um mundo teórico, que ignorava o contexto institucional do comportamento econômico e a administração dos assuntos econômicos no setor público.
O institucionalismo epistemológico de Hayek, como articulado nas décadas de 1930 e 1940, proporcionou as bases para sua própria reconstrução e reafirmação da economia política liberal, como evidenciou em Constituição da Liberdade e em Direito, Legislação e Liberdade. Saber desse aspecto no pensamento de Hayek é um primeiro passo para reconhecer suas contribuições mais amplas para a ciência econômica e para a arte da economia política.
Com as limitações da razão humana, precisamos de regras espontâneas, gerais e abstratas, resultado da ação humana não propositada, para atingir uma ordem social, mas que não ignorem a razão (Racionalismo Crítico ou Evolucionista). Critica a fé cega na razão, pois esta é um aparelho de crítica mais do que de construção, mas reconhece que tem um papel importante em alguns casos: por vezes, a razão, através da legislação, é a única forma de corrigir um caminho errado que a lei possa estar tomando. Opõe-se, portanto, aos anarquistas modernos, quando afirma que a lei não pode ser deixada totalmente ao sabor da evolução natural, as regras de organização (legislação) devem estar sujeitas ao controle de normas de justa conduta (lei) e o governo deve ser limitado e estar subordinado à lei, com a tarefa de proteger a ordem espontânea através do seu monopólio da força.
Estabelece que a democracia (a regra da maioria) inspirada no liberalismo (na limitação de poderes) deve ser subordinada a mecanismos como a separação de poderes e a Constituição (ou vários textos, como no Reino Unido), como um meio, e não um fim, para aplicar a lei – normas gerais e abstratas que exprimem valores – o primado da lei, um governo de leis e não de homens (common law).
Ora, aceitar a ignorância humana e as ordens espontâneas implica defender a Cataláxia – o livre mercado, baseado no sistema de preços, como a melhor forma interpessoal de comunicação mais eficaz, através da cooperação, imitação e competição entre agentes da sociedade. O fato de o mercado fazer com que pessoas que não se conhecem e com interesses diferentes tenham ações coordenadas, isto é, ao buscar seus objetivos contribuem para que os outros também consigam atingir os seus, tudo de forma não deliberada, revela que a ordem espontânea é melhor do que a ordem organizada. Por isto mesmo, defende também uma descentralização do poder político: unidades de governo locais, subordinadas a uma lei geral e igual para todos.
Sustentava que o estado deve ser pequeno, limitado a campos que acreditava justificáveis (renda mínima, ruas, estradas, parques, monumentos, instituições públicas como centros de pesquisa, teatros e centros desportivos, certificados de qualidade e restrições na venda de produtos perigosos, regulamentações na construção civil, alimentação e saúde, etc).
Porém, estava plenamente ciente de que quando a intervenção estatal começa é muito difícil contê-la e aí se inicia o Caminho da Servidão, e por isso tentou arranjar mecanismos para limitar o Estado e sonhava com estados menores e em competição.
Essa aparente Caixa de Pandora – as exceções listadas – e o fato de ser difícil limitar o Estado são as principais críticas feitas a Hayek pelo ramo da Escola Austríaca que segue os ensinamentos de Rothbard, também um ex-aluno de Mises (e ideologicamente um meio termo entre ambos, a meu ver).
Vê o socialismo e a social-democracia, como demonstrou em The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, como um erro intelectual, porque é impossível uma entidade central organizar eficazmente a sociedade, dado que não consegue utilizar o conhecimento, sempre disperso, para “melhorar” a vida social (os socialistas acham que há sempre quem “sabe” o que é melhor para nós e se não concordarmos com a sua visão é porque ainda não percebemos que o que eles acham que é o melhor para nós é mesmo o melhor para nós e, por isso, que ainda estaríamos na ignorância).
Criticava os socialistas porque estes pensavam que a sociedade – uma ordem extensiva de cooperação entre indivíduos e organizações – funciona da mesma forma que os pequenos grupos primários. Mas a sociedade não funciona como uma grande família, não tem as características dos grupos primários, como solidariedade e lealdade; o vendedor de sorvetes que dá um sorvete ao filho de graça não pode fazer o mesmo para todas as crianças que vão à sua loja. Dizendo de outra maneira, homens são homens e não formigas, abelhas ou cupins.
Foi criticado porque, apesar da sua defesa da liberdade negativa (ausência de coerção) e dos direitos negativos, aceitava um mínimo de coerção como sendo necessária para proteger a liberdade individual, garantir a manutenção das normas espontâneas, assegurar o quadro jurídico do livre mercado (a Cataláxia), garantir que contratos voluntários sejam respeitados, a defesa do país contra inimigos um mínimo de segurança social (uma safety net). E também por sustentar que a liberdade para todos e sem limites levaria ao fim da própria liberdade e, portanto, que cabe ao Estado garantir o respeito pela liberdade individual, de modo a que se consiga maximizar a liberdade possível. Assim como Milton Friedman, vê o Estado como árbitro do jogo (ou jardineiro), mas defende que essa autoridade deve também estar sujeita a regras abstratas e ao controle de outros mecanismos independentes, para não cairmos no intervencionismo estatal construtivista que, depois de começar, sempre em nome da “justiça social”, é muito difícil de ser contido.
É muito importante salientar que Hayek percebeu claramente que as ordens espontâneas podem assumir várias formas e, portanto, podem ter valores liberais ou não. O fato de uma ordem ser espontânea não significa que não possa ser criticada e que algum construtivismo não possa ser necessário (como a proibição da segregação racial, por exemplo).
Porém, uma crítica importante a Hayek é que o primado da lei (Rule of Law) é imposto por pessoas e ele pretendia que fôssemos governados pela lei e não por decisões arbitrárias de políticos (legislação), que têm interesses próprios, mas então quem imporia essa lei? Podem-se criar várias assembleias para que umas limitem as outras, mas, no final, a lei será imposta sempre por pessoas, indivíduos. Outra objeção comum é ao conceito confuso de coerção de Hayek, que se chega a revelar por vezes contraditório, como escrito por Rothbard. E, por fim, alguns anarcocapitalistas sustentam que Hayek é incoerente, quando aceita algumas áreas em que o governo deve intervir, depois de dizer que nenhuma entidade central pode planejar uma sociedade, visto que o conhecimento está disperso.
O ponto é que, mesmo sujeito a algumas ou a todas essas críticas, não é definitivamente apropriado taxar Hayek de “social-democrata”, pois ele sempre foi um liberal, talvez com o “defeito”, segundo a concepção de algumas seitas, de ser realista e prático em termos de Filosofia Política.
4. Economia: Esforços Positivos ou Heurística Negativa?
Nos anos 90, Joseph Salerno, Murray Rothbard e Jeffrey Herberner (doravante SRH) publicaram um conjunto de artigos na Review of Austrian Economics, sobre as diferentes explicações de Mises e Hayek do problema do cálculo no socialismo. Em suma, sustentando que o argumento de cálculo de Mises havia diagnosticado o problema do socialismo, antes da entrada de Hayek no debate e que a análise de Hayek do problema não constituía um obstáculo para o funcionamento do socialismo.Leland Yeager perguntou se os argumentos de SRH eram ou não uma tentativa de tratar os argumentos de Hayek e Mises como mutuamente exclusivos e isso suscitou um debate que enfatiza as divergências entre Hayek e Mises, deixando de lado, infelizmente, um grande e rico terreno comum.
Em termos gerais, Mises e Hayek argumentaram que, na ausência de mercados livres e propriedade privada, a autoridade central de planejamento não é capaz de tomar decisões eficientes de alocação de recursos. Contudo, as explicações eram diferentes:
Mises apresentou dois grandes argumentos para afirmar que uma autoridade central de planejamento não pode tomar decisões eficientes de alocação de recursos: (1º) a falta de incentivos proporcionados em uma sociedade socialista para que as pessoas atuem economicamente: a falta de propriedade privada de capital e terra no socialismo não proporciona às pessoas motivos para agirem de forma responsável e assumirem iniciativas; (2º) dificuldades de determinar valores monetários dos bens de produção no socialismo, pela ausência de propriedade privada.
Hayek também expôs dois argumentos contra o socialismo, menos claros, pois surgiram como uma extensão dos argumentos de Mises e depois foram desenvolvidos ao longo de muitos anos: primeiro, em resposta direta aos argumentos de economistas mainstream de que os preços não precisam ser os fornecidos pelo mercado, mas também podem ser preços (non market prices) anunciados pelas autoridades centrais, ele demonstrou que, mesmo se fosse possível coletar todos os dados relevantes, o problema do socialismo ainda não seria resolvido, devido à “natureza e quantidade de informações concretas necessárias para tentar uma solução numérica e a magnitude da tarefa que esta solução numérica deve envolver em qualquer comunidade moderna“. A quantidade de informação necessária para tornar o resultado pelo menos comparável com o que o sistema competitivo fornece excederá o poder da análise algébrica. [viii]
O segundo argumento é que o conhecimento fornece os dados a partir dos quais o cálculo econômico começa, mas esses dados não podem ser capturados por uma autoridade central de planejamento porque não estão prontamente disponíveis e estão dispersos ao longo do tempo e de lugar; trata-se de conhecimento privado e que depende de contextos particulares. Hayek escreve:
“O conhecimento das circunstâncias de que devemos fazer uso [para calcular] nunca existe de forma concentrada ou integrada, mas apenas como fragmentos dispersos de conhecimento incompleto e freqüentemente contraditório que todos os indivíduos separados possuem”. [ix]
Para Hayek, então, o problema do socialismo está principalmente enraizado na ignorância ou falta de conhecimento da autoridade central de planejamento.
Chegando a uma distinção
Com base nesses argumentos, SRH procuram distinguir entre Hayek e Mises. Nunca foram claros, mas parece que são escorados em duas proposições fundamentais: (1ª) o argumento de cálculo de Mises diagnosticou suficientemente o problema do socialismo, antes da entrada de Hayek no debate e (2ª) a ênfase de Hayek na falta de conhecimento das autoridades de planejamento central não se constituiria necessariamente em obstáculo para o funcionamento do estado socialista.
SRH e a análise de Mises sobre o problema do socialismo
A posição de SRH é que Mises diagnosticou suficientemente o problema do cálculo, ao enfatizar que a falha do socialismo diz respeito aos direitos de propriedade, porque estes permitem que o processo de avaliação incorpore efetivamente as mudanças, por meio de certas instituições sociais, que não podem ser replicadas no estado socialista.
SRH e a Análise de Hayek do Problema do Socialismo
Embora SRH nunca tenham explicado claramente como o tal processo de avaliação justifica a distinção entre o argumento de conhecimento de Hayek e o argumento de cálculo de Mises, Salerno fornece fortes indícios de que a lógica subjacente para esta posição é baseada em sua visão de Hayek como um “teórico de equilíbrio estático”. Tentam refutar, a partir daí, a explicação de Hayek para o problema do socialismo com o argumento de que, quando uma economia opera em estreita proximidade com o equilíbrio, a possibilidade de que as informações relevantes possam ser coletadas e transmitidas a uma autoridade central não pode ser impedida. Hayek seria, então, um teórico de equilíbrio estático, pela influência de Friedrich von Wieser, segundo SRH.
Ora, se Hayek é mesmo um teórico de equilíbrio estático (para quem a economia opera em seu estado final de repouso e não apenas em estreita proximidade com ele), SRH podem concluir que apenas a explicação de Mises para o problema do socialismo, através da atenção explícita que ele dá ao papel do empreendedor no processo de avaliação, é capaz de refutar suficientemente a possibilidade do cálculo socialista.
Hayek: um teórico dinâmico ou do equilibrio proximal?
É verdade que Hayek é um teórico de equilíbrio estático?
A resposta a depende da abordagem da interpretação dos escritos de Hayek: se for estreita, a resposta é sim; mas, se for mais ampla, é difícil negar que seu principal interesse se concentrou no caráter dinâmico da organização econômica (ou organização social, mais tarde, em sua carreira). Ele fez inúmeras referências em seus artigos sobre conhecimento a uma tendência para o equilíbrio, que indica seu interesse pelo caráter dinâmico da economia, mas nunca explicita a magnitude ou a proximidade pela qual essa tendência ocorre em relação a um estado de equilíbrio completo. Por isso, pode-se argumentar que a tendência ao equilíbrio proposta por ele seja muito próxima de um estado de equilíbrio completo.
Esta interpretação ajudaria a justificar a definição de “equilíbrio proximal” (próximo do centro) de SRH, como sendo quase equivalente ao equilíbrio estático e, portanto, a enfatizar a distinção entre ele e Mises.
Contudo, ver Hayek como um teórico de equilíbrio ou de equilíbrio proximal implica admitir que ele considerava que a economia estava sempre próxima de um estado de equilíbrio final ou estático, de modo que os preços presentes contivessem todas as informações necessárias para orientar os produtores a tomar decisões ótimas de alocação de recursos, proporcionando assim um futuro que não é muito diferente do presente. Nesse caso, obviamente, não existiria incerteza genuína, a questão da insuficiência e dispersão do conhecimento não seria relevante e, portanto, Hayek não teria refutado o socialismo.
Porém, ao ler Hayek em um contexto mais amplo e mais recente (anos 70), a visão dele como um teórico do equilíbrio estático é bem difícil de aceitar, porque nesses escritos, Hayek frequentemente dá atenção explícita à importância de conceitos dinâmicos como “aprendizagem” e “descoberta” na explicação do progresso social. Os Hayekianos sabem que “aprender” e “descobrir” são os eixos das explicações de Hayek sobre o que traz a ordem social. Na ausência de ordem (ou seja, instituições), não haveria progresso social, porque as pessoas seriam incapazes de satisfazer as suas necessidades básicas, cuja satisfação serve como pré-requisito para que possam lidar com a “novidade“ necessária para o progresso social. [x]
Ou seja, se a ênfase recair nos escritos posteriores, Hayek pode ser visto como um teórico do equilíbrio dinâmico (ou, mais corretamente, o equilíbrio Hayekiano é dinâmico).
Em busca de um consenso
Dada essa discussão e a grande quantidade de escritos de qualidade sobre o tema da organização econômica, deve haver consenso geral entre os austríacos em, pelo menos, duas questões.
(1ª) o problema do cálculo econômico está enraizado na dinâmica econômica, e não no equilíbrio ou “equilíbrio proximal” estático.
(2ª) se interpretarmos Hayek como um teórico do equilíbrio estático, é realmente possível refutar seu diagnóstico do problema do socialismo e fazer uma distinção entre ele e Mises.
5. Conclusão: Reciprocamente Excludentes ou Complementares?
Uma agenda positiva
Penso ser muito importante que os economistas da Escola Austríaca busquem se concentrar em esforços positivos, em vez se dispersarem em heurísticas negativas.
Meu conselho aos meus alunos é que devemos tirar o máximo proveito dos muitos e excelentes escritos de ambos, Mises e Hayek, bem como de outros autores e ter sempre em mente um programa de pesquisas progressivo e positivo. Acredito que seja esse é o grande desafio para a Escola Austríaca neste século XXI. O foco em aspectos estreitos resulta em divergências e briguinhas desnecessárias, dispersivas e de utilidade, no mínimo, duvidosa.
Abaixo a mitologia da coerência, porque o que realmente importa é que somos todos austríacos!
Referências:
[i] Boettke, P., Living Economics: Yesterday, Today and Tomorrow, 2012)
[ii] Hoppe, H. H., Por que Mises (e não Hayek)? ( IMB, 11/10/2011)
[iii] Reflections on the Misesian Legacy in Economics, em Review of Austrian Economics 9 (2), p. 154
[iv] História do Debate do Cálculo Econômico Socialista (p. 210)
[v] Hayek on Hayek, p. 72
[vi] The Skilfull Professor Rothbard, Mises Institute, 28/11/2005) e The Mantle of Science e Praxeology as the Method of the Social Sciences, Cato Institute, 1979.
[vii] Ver, por ex., Salerno, J, Ludwig von Mises as Social Rationalist,RAEVol. 4 (1990): 26–54
[viii] Em Hayek, Individualism and Economic Order, 1948
[ix] Hayek, The Use of Knowledge in Society, 1948, p 77
[x] Hayek: Competition as a Discovery Procedure, 1979; The New Confusion About Planning, 1979; Law, Legislation, and Liberty, 1973; Butos, William H. e Roger Koppl, Hayekian Expectations: Theory and Empirical Expectations, 1993; Lewin, Peter: Hayekian Equilibrium and Change, 1997.
Fonte: “Ubiratan Iorio”, 07/01/2018