Em 25 de junho, a Harley-Davidson anunciou a transferência de parte de sua produção para o exterior. A famosa marca americana de motocicletas informou, em comunicado à imprensa, clientes e fornecedores que estava fazendo isso para evitar as tarifas de retaliação impostas pela União Europeia (UE), em resposta aos impostos de importação dos EUA.
Imediatamente, o presidente Donald Trump twittou: “A Harley-Davidson nunca deveria ser construída em outro país – nunca!”. E completou com uma ameaça: “Se eles se mudarem … será o começo do fim.”
A irritação de Trump é compreensível. Há pouco tempo, em fevereiro, as coisas eram muito diferentes. Numa reunião com executivos daquela empresa, na Casa Branca, Trump elogiou a Harley-Davidson por ser “um verdadeiro ícone americano, um dos grandes”, e agradeceu-lhes “por construir as coisas na América”.
Leia mais de João Luiz Mauad:
O perigo do dinossauro mercantilista
Os maus investimentos e o papel do governo
Sobre ganância, egoísmo e interesse próprio no capitalismo
A força motriz por trás do voluntarismo protecionista de Trump é o déficit comercial dos Estados Unidos e a visão distorcida do presidente de que os seus parceiros comerciais estão tirando proveito dos EUA ao exportarem muito mais do que importam. Bobagem!
Desde Adam Smith e David Ricardo, os bons economistas entendem que as estatísticas de exportações e importações nacionais são uma grande tolice. Recentemente, o economista Gregory Manckiw, autor do livro didático de economia mais utilizado do mundo, fez um apelo aos jornalistas econômicos, em seu blog: “Eu sei que isso é mais trabalhoso, mas dizer que “a balança comercial melhorou” dá credibilidade à visão de que os superávits comerciais são sempre bons e que os déficits comerciais são sempre ruins. Isso não é verdade, claro… Mas, à luz de toda a loucura que está ocorrendo ultimamente em relação às políticas comerciais, é melhor não ajudar e confortar inadvertidamente os malucos.”
O que “malucos” como Trump parecem desconhecer, além da teoria da vantagens comparativas, é que, atualmente, com as cadeias de produção altamente globalizadas e complexas, essas estatísticas são ainda menos relevantes. Um exame atento do que acontece com um iPhone, por exemplo, mostra por que isso é verdade.
Olhando os números da balança de comércio americana, as importações do iPhone parecem representar uma grande perda para os EUA. Estimativas sugerem que as importações do iPhone contribuíram com US $ 15,7 bilhões para o déficit comercial do ano passado com a China.
+ Joel da Fonseca: “Com Donald Trump, a ordem global americana corre o risco de falir
Mas, como mostra esta pesquisa sobre os custos de um iPhone 7, esse número não reflete a realidade do valor que a China realmente obtém de suas exportações do iPhone – ou de muitos dos produtos eletrônicos de marca que envia para os EUA e outros países. Graças às cadeias de suprimento globalizadas, os déficits e superávits comerciais no mundo moderno nem sempre são o que parecem.
Da estimativa de custo de fábrica de US $ 237,45 no momento em que o iPhone 7 foi lançado, no final de 2016, calcula-se que todo o ganho da China foi de US $ 8,46, ou 3,6% do total. Isso inclui uma bateria fornecida por uma empresa chinesa e o trabalho utilizado na montagem do smartphone.
Os outros $ 228,99 vão para outros lugares. Os EUA e o Japão recebem cerca de US $ 68 cada. Taiwan fica com cerca de US $ 48, e pouco menos de US $ 17 vão para a Coréia do Sul, US $ 6 para a União Europeia e os restantes US $ 21 para outros países. Além disso, cerca de US $ 283 de lucro bruto sobre o preço de varejo – de US $ 649 para um modelo de 32GB – vão direto para os cofres da Apple.
Pois é. Esse negócio de cadeias produtivas globais é muito mais complexo do que imaginam os protecionistas e nacionalistas. Trump provavelmente não sabe, mas alguns carros montados por indústrias japonesas dentro dos Estados Unidos são mais americanos que alguns outros, montados por empresas genuinamente nacionais. ¾ das partes e peças do Camry 2017, montado nos EUA pela Toyota, foram fabricadas nos EUA, inclusive motor e transmissão. Da mesma forma, a Honda, sediada em Tóquio, construiu seu Accord nos Estados Unidos com um motor americano, transmissão japonesa e 80% de peças dos EUA.
+ Érica Gorga: “O Estado não deve arcar com o ônus das estatais deficitárias”
Já o Chevrolet Volt, da General Motors, por outro lado, contém apenas 63% de conteúdo nacional e metade de suas partes vêm de fora dos EUA. Enquanto isso, o Fusion, da americaníssima Ford, é ainda menos americano: tem um motor construído no Reino Unido e apenas um quarto das suas peças foram fabricadas nos EUA.
Voltando às motocicletas Harley-Davidson: talvez ninguém tenha contado isso a Trump, mas muitos dos seus componentes também vêm de muitos lugares fora dos EUA, assim como ocorre na indústria automobilística.
As Harleys vendidas em solo americano são de fato montadas em uma das quatro fábricas localizadas em Wisconsin, Missouri e Pensilvânia. Mas os freios e a embreagem são importados da Itália, os pistões do motor são fabricados na Áustria, a suspensão da vem do Japão e outros componentes eletrônicos são originários do México e da China.
Enfim, o que Trump e outros protecionistas parecem não entender é que muitas outras coisas importam mais do que onde um bem de consumo é montado. Ou, como dizia Bastiat, num mundo com cadeias de produção altamente complexas e diversificadas, “existe aquilo que se vê e aquilo que não se vê”. E, a despeito do que diga ou faça Mr. Trump, as empresas farão o que precisa ser feito para se manterem competitivas, mesmo que isso signifique uma mudança para o exterior.
Fonte: “Instituto Liberal”, 17/07/2018