Não quero persuadir ninguém a gostar de funk. Me preocupa, no entanto, o ímpeto de censurá-lo. A vítima da vez é a música “Só Surubinha de Leve”, de MC Diguinho. O problema estaria numa suposta alusão a estupro. Por isso, foi tirada das plataformas de streaming e do YouTube. Ouso perguntar: e qual é o problema?
Descrição e mesmo experiência imaginada de condutas imorais são comuns na música popular. Até os Beatles tiveram seus momentos criminosos, como no ciúme violento e potencialmente assassino de “Run for Your Life”.
Jimi Hendrix nos fez encarnar o assassino da namorada infiel em “Hey Joe”. “Every Breath You Take”, hit do The Police, canta a obsessão possessiva de um homem abandonado. Quem age assim age muito mal. Mas quem nunca sentiu assim?
A lógica da música não é a da edificação moral. Ela nos transporta para estados de espírito e desperta paixões que não se limitam à estreita faixa da moralidade, da conduta publicamente sancionada pela sociedade. Vamos muito além disso; somos levados aos extremos da experiência. E está tudo bem, porque é só música.
O rock já foi combatido. Hoje é universalmente aceito. O preconceito (que também inclui raça e classe) recai sobre o funk, estilo que trata diretamente da autoafirmação e do desejo sexual.
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Brinca com fantasias de dominação e submissão; fantasias que existem por todo lado, em ambos os sexos e todas as classes; talvez até em quem busca silenciá-lo. Por isso faz sucesso.
Sempre haverá forças que buscam banir das artes o lado sombrio da humanidade. Hoje, esse ímpeto censório –da música, do teatro e das artes plásticas– está em alta. É impensável que artistas hoje componham com a mesma liberdade com que Raul Seixas, Marcelo Nova, Mamonas Assassinas, os Raimundos e tantos outros compuseram em suas épocas.
Até o clássico “Entre Tapas e Beijos” seria certamente problematizado como violência doméstica. Estamos perdendo a liberdade criativa. Nas periferias ela ainda existe, mas também vai ficando mais policiada.
Há aí uma visão ingênua sobre o ser humano: a ideia de que o homem bom é aquele que não se permite nutrir sentimentos impróprios –nem mesmo em seu íntimo, nem mesmo em um momento de escape fantasioso. A bondade é vista como a incapacidade interior para o mal; e o homem bom como o animal de rebanho plenamente dócil.
Penso que essa pessoa não é boa; ela carece da coragem interior para experimentar o que não lhe é permitido pela moral pública. É uma criança moral.
O homem bom não é aquele incapaz da maldade, incapaz de se afirmar ou de causar dor e sofrimento; aquele que jamais entra em contato com seu lado sombrio. É aquele que faz o bem mesmo sendo capaz de fazer o mal. Atingir essa maioridade moral passa por ficar à vontade com os sentimentos que compõem a própria escuridão; e quem sabe até gostar deles. A arte –inclusive o funk– tem um papel aí.
O patrulhamento moralista da arte não produz homens melhores, e sim mais tímidos. Também mata o fogo criativo, especialmente se for internalizado pelos artistas. O modernista francês André Gide –condenado pelo Index da Igreja Católica e que certamente seria mal visto pelos ativistas de 2018- dizia:
“É com os bons sentimentos que fazemos a má literatura”. Vivemos dias de ótimos sentimentos; MC Diguinho que o diga.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 23/01/2018
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