O tema da capitalização parece ter sido incorporado à discussão nacional sobre a Previdência. Esse debate é positivo, ainda que muito mais complexo do que em geral se imagina. Quando o assunto surgiu, no ano passado, o frisson associado às suposições acerca do que o novo governo a ser empossado em janeiro iria fazer levava a acreditar que a capitalização seria uma espécie de cura definitiva para a nossa combalida Previdência Social. Com o amadurecimento da matéria, ficou claro que a reforma teria fatalmente de envolver como ingrediente fundamental uma mudança dos parâmetros que regem as regras de aposentadoria e que o tema da capitalização iria muito além dessa questão, não devendo ser encarado como a solução para o atual déficit.
Por outro lado, o debate foi muito bom porque serviu como um elemento catalisador que fez “cair a ficha” de muita gente que, tendo rendimentos superiores ao teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), não estava se preparando adequadamente para a chegada da chamada “terceira idade”.
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Anos atrás, quando eu dava aulas de Finanças Públicas, ao passar pela parte da ementa do curso relacionada com a Previdência, costumava dizer que “o ser humano, lá pelos 10 anos, aprende que um dia pode morrer; lá pelos 40, descobre que um dia irá se aposentar; e, na altura dos 60, percebe que poderá viver mais do que imaginava”. São momentos extremos com a sua carga de angústia na vida da pessoa: na infância, quando aos poucos a criança começa a perceber que haverá um futuro no qual ela não estará mais no mundo; e, em torno de quatro a cinco décadas depois, quando o fim da vida ativa começa aos poucos a se desenhar confusamente no horizonte da pessoa já adulta e ela toma nota de que deixou passar boa parte dela sem ter feito absolutamente nada para o momento em que não puder mais trabalhar e sua renda for cair abruptamente – com a agravante de que poderá precisar dessa renda não durante mais duas décadas, e sim durante três ou quatro.
É por isso que Trotski – não é o tipo de frase que costumamos ver associada a ele, mas foi quem cunhou a sentença – disse certa vez, com certa dose de ironia, que “a velhice é a mais inesperada de todas as coisas que acontecem a um homem”.
É para ajudar neste esforço individual de preparação para o futuro que passou a ser discutida no meio previdenciário uma proposta consistente de criar um produto previdenciário em moldes similares ao Tesouro Direto, ideia concebida originalmente por Abraham Weintraub e outros autores, num artigo de 2017 (Poupança Individual de Aposentadoria – PIÁ, Revista Brasileira de Previdência).
Tendo este contexto como pano de fundo, com o objetivo de desenvolver o tema e colaborar no enriquecimento do debate sobre o assunto, em coautoria com Felipe Amaral analisamos recentemente em bases puramente técnicas os desdobramentos do lançamento de tal produto no mercado brasileiro, no artigo Previdência Direta: o Tesouro Direto para a Previdência (texto para discussão do BNDES n.º 138, maio de 2019, disponível em www.bndes.gov.br). Os resultados foram muito positivos. A ideia é procurar adaptar o Tesouro Direto para o que denominamos Previdência Direta, levando até o usuário a possibilidade de poupar com objetivos de longo prazo, para ter direito a uma renda vitalícia a partir de certa idade. Esta será tanto maior quanto maiores forem as suas contribuições, o período de duração da fase contributiva e o rendimento da aplicação.
Em nossa configuração para a operacionalização do produto, simulamos os valores previstos para a aposentadoria em comparação com uma gama de alternativas existentes para a obtenção de uma aposentadoria complementar, o que abarcou a previsão da renda gerada pelo próprio INSS – para efeitos comparativos – e pelo investimento em imóveis, fundos de investimento, no Tesouro Direto e em planos previdenciários de fundos de pensão e do mercado segurador (PGBL e VGBL). A Previdência Direta revelouse um instrumento claramente superior, em nossa análise. Para um esforço financeiro idêntico, previmos que ela geraria uma renda em média 67% maior que a gerada pelo INSS.
Comparada com as alternativas do mercado privado, a relação custo-benefício da Previdência Direta foi ainda mais interessante. Particularmente notável foi a constatação de que a expectativa de renda de aposentadoria gerada pela aplicação no Tesouro Direto é superior àquela gerada em planos do mercado segurador aberto, mesmo considerando o reinvestimento dos benefícios tributários. Na lanterna das projeções ficaram os fundos de investimento tradicionais, a poupança e os imóveis. Nestes casos, as rendas de aposentadoria foram menores por causa da inexistência de benefícios tributários, em alguns casos; ou das altas taxas de administração, da baixa rentabilidade ou da impossibilidade de consumir o principal durante a aposentadoria, em outros.
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Sob a ótica do governo federal, a criação de um produto do gênero seria uma oportunidade de ouro. Primeiro, por ser um produto de adesão facultativa, não haveria resistência de nenhum setor da população para seu lançamento. Segundo, o produto não acarretaria na concessão de nenhum outro tipo de benefício tributário que já não esteja vigente para o mercado. E terceiro – e mais importante –, tendo um mercado potencial na casa dos trilhões de reais, o Tesouro Nacional conseguiria uma fonte abundante, estável e de longo prazo para a rolagem da dívida pública. Tal fato pode ajudar a baratear o custo desta e fornecer uma excelente fonte de financiamento de investimentos de longo prazo, como os investimentos em infraestrutura.
Vale a pena pensar no assunto.
Nota: agradeço a Felipe Amaral, que colaborou na elaboração da versão final do presente artigo.
Fonte: “Estadão”, 05/06/2019