É muito difícil narrar mudanças paramétricas da Previdência para os celetistas de hoje. A narrativa é muito negativa. É sempre assim: “Vocês terão que trabalhar e contribuir mais tempo, com alíquotas maiores sobre salários e quando se aposentarem irão ganhar menos; e fica no ar a ameaça: “E vocês que contribuem hoje, quando se aposentarem, talvez vossos filhos terão que trabalhar ainda mais tempo e contribuir com maiores alíquotas para que as promessas feitas para vocês hoje sejam cumpridas no futuro”. O governador Covas, numa reforma para servidores paulistas em 1999, enfrentou turbas furiosas, chuva de ovos e foi brecado pelo STF. FHC, Lula e Dilma fizeram jogadas na lateral do campo e uma mais robusta proposta de reforma paramétrica de Temer, mesmo toda picotada, ainda assim não foi aprovada. É um problema mundial. Macron e Putin têm o mesmo problema com seus sistemas falidos de repartição, mas até agora nem tentaram pegar nesse fio desencapado. Os sistemas de repartição são inviáveis na sua economia e na sua política.
A nossa narrativa sobre reforma Previdenciária mudou nos últimos dois anos, de imperiosa necessidade fiscal para imperiosa correção de uma injustiça social. A nova narrativa é melhor politicamente e muito real, mas não invalida o argumento fiscal. Sem equilíbrio fiscal a divida pública dispara, a política monetária se torna impossível e a prosperidade não virá. Os sistemas federais e estaduais tiram rendas dos pobres para dar aposentadorias polpudas para a média e alta classe dos burocratas públicos, que ainda se aposentam muito cedo. Cada um dos 208 milhões de brasileiros já paga hoje, em média, R$ 500 por ano para cobrir o deficit previdenciário dos funcionários públicos estaduais e cada um dos brasileiros deve hoje para os burocratas públicos estaduais 20 mil reais em valor presente. Mas ainda existem burocratas públicos, geralmente professores de universidades públicas, sindicalistas, jornalistas e economistas próximos ao poder que emana de Brasilia, que defendem que a nossa inviável Previdência é problema que se resolve com crescimento econômico, com o fim da corrupção ou cobrando dividas fiscais de empresas que não existem mais. São misturas de truísmos com fantasias, casos graves de dissonância cognitiva.
Como entramos nesse imbróglio? O mundo entrou. Os sistemas de aposentadoria por repartição vieram no bojo do otimismo pós-Segunda Guerra. No início, sobravam contribuições, faltavam idosos e a população crescia muito. O otimismo contagiou muitas grandes empresas que fizeram acordos muito generosos com sindicatos. Mas a conta chegou com menos contribuições e mais idosos que viviam muito mais. Nos EUA, muitas empresas faliram e muitas só saíram de acordos sindicais na Justiça. O mesmo aconteceu com os os sistemas públicos de repartição, onde a Justiça não tem como ajudar, por ser parte do problema.
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Mas existem narrativas positivas. É mais fácil convencer os 50 milhões de brasileiros que hoje não contribuem para a Previdência a começarem a contribuir com 11% do que ganham para sua conta individual previdenciária. Precisam de trabalho mais contínuo. Mas para esses 50 milhões de brasileiros informais e desempregados serem contratados pelos 27 milhões de empregadores brasileiros, o contrato de trabalho não poderia ser o da CLT. O trabalhador de CLT leva para casa um terço do que custa para o empregador. Sem essa gigantesca cunha fiscal, os 50 milhões de desempregados e informais teriam muito mais ofertas de empregos, pois custariam muito menos para o empregador, com mais ganhos para o trabalhador e com segurança jurídica para ambos. O trabalhador levaria pelo menos o dobro para casa do que leva hoje pela CLT. Seria necessário um sistema de arrecadação, com o empregador sempre pagando salários por aplicativo bancário, que depositaria automaticamente 11% dos salários pagos em contas individuais.
A narrativa positiva para os políticos e alguns economistas seria que a receita fiscal dos 45 milhões de contribuintes do sistema atual não seria afetada além do impacto de reformas paramétricas razoáveis. O tsunami da transição dos que contribuem hoje para um sistema de contas individuais se tornaria uma inconveniente tempestade de verão, mas com uma economia que enxergaria o problema previdenciário como equacionado. Seria uma variação da proposta dos dois aviões. Os informais embarcariam num avião novo. O avião com problema, o dos contribuintes via CLT, jogaria fora todo o peso possível e poderia pousar de barriga numa pista com muita espuma.
Sistemas de proteção social jamais são perfeitos, têm tendência a serem abusados e precisam de manutenção constante. São também para-raios de lutas partidárias. O sistema de contas individuais do Chile implantado em 1980 circulou com números e argumentos fajutos em reportagens domésticas recentes. Os políticos de hoje reconhecem que o sistema não tem atendido à expectativa dos idosos mais pobres, e em 29 de outubro do ano passado o Executivo enviou um projeto de lei ao Congresso com extenso diagnóstico e propostas. Os números e argumentos que seguem são deste projeto.
+ Como funciona a Previdência chilena?
O problema central do Chile é que as pessoas, por várias razões, não depositam em suas contas previdenciárias, mas têm altas expectativas. Depois de três gerações de governos prometendo boas aposentadoria para todos, o hábito de poupar para a velhice se perdeu. O problema central é composto pela sobrevida cada vez maior dos chilenos. Os homens depositam em média 19,7 anos e vivem 20,3 anos após se aposentarem. As mulheres depositam em média 12,9 anos e sobrevivem 30,4 anos. Os homens e principalmente mulheres depositam o equivalente a muito menos anos do que são beneficiários. Quem corre em socorro hoje é o “pilar solidário”, criado no atual formato em 2008 e que atende 1,5 milhões de idosos e inválidos (8,3% da população) com apenas 0,8% do PIB em arrecadação, que não é sobre o trabalho. Esse pessoal está infeliz. O pilar social diminuiu a pobreza extrema dos idosos e inválidos, mas se o Chile não resolver o problema do descasamento entre depósitos e benefícios o pilar social irá se tornar um problema fiscal.
O Chile tem desemprego baixo, mas assim mesmo os trabalhadores não contribuem para suas contas previdenciárias. E tudo irá piorar, pois o Chile já migra para uma economia GIG, onde milhões de trabalhadores não tem empregadores. No Brasil, os empregadores que seguem a CLT são minoria e compulsórios publicanos dos governos, mas estão também sumindo. A cultura chilena de poupar para a velhice é baixa e a brasileira, inexistente. Nada como na China, cujas famílias poupam voluntariamente mais de 40% da renda.
O sistema chileno mostra várias virtudes. Pessoas que depositaram por 25 anos recebem 78% do salário médio. As que depositam por 30 anos recebem 80% do último salário. As pessoas decidem quanto tempo contribuir, quando se aposentar e como. Os saldos dos fundos previdenciários já passaram de 90% do PIB. O impacto positivo em prosperidade foi enorme e hoje o Chile tem a maior renda per capita da America Latina e continua a crescer bem acima da média regional. O Chile é muito integrado ao mundo, sendo a relação importação+exportação/PIB igual a 0,47 – de longe a maior da América Latina. As contas individuais não são impostos e o pilar social é pago com impostos gerais. Por isso a carga fiscal chilena tem níveis asiáticos, cerca de 20%. Apesar de problemas, não apareceu nada melhor e hoje 40 países já migraram para sistemas previdenciários de contas individuais. Os sistemas de repartição são problemas fiscais e políticos crônicos.
Comenta-se hoje sobre a viabilidade do Brasil começar um sistema de contas individuais para aposentadoria. São dois os desafios. O segundo desafio é remover os desincentivos para poupar. O primeiro desafio seria retirar a cunha fiscal entre trabalhador e empregador criada pela CLT, para que esses 50 milhões de trabalhadores informais fossem contratados para melhores e permanentes trabalhos.
O caso do Chile mostra que, se não houver arrecadação, nenhum sistema de aposentadoria resiste. O caso do Brasil é dramático pois a arrecadação é pouca, a redistribuição é injusta, o desemprego é alto e o emprego informal maior do que o formal. Existe algo muito errado na nossa definição de trabalho formal.