A coluna Fatos, regularmente publicada nesta VEJA digital, também é cultura. Só de vez em quando, claro, e sempre em doses moderadas, pois artigos escritos por jornalistas raramente farão muito mal a alguém se ficarem nos limites da leitura ligeira. É o que será tentado nas linhas abaixo, levando-se em conta que certas obras de primeira classe podem ajudar na compreensão do presente ─ no caso, uma cena particular da aflitiva disputa eleitoral pela Presidência da República que está aí. Trata-se de comparar O Anjo Azul, um dos momentos mais festejados na história do cinema universal, e a inédita candidatura por default, como se diz no português de hoje, do professor Fernando Haddad. O filme, um símbolo pungente da Alemanha a caminho da catástrofe, lançado em 1930 e inspirado na obra de Heinrich Mann, narra a tragédia humana do professor Unrat ─ um impecável educador cuja vida entra em decadência e acaba em ruínas, na miséria, na sarjeta e na cadeia.
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A desgraça de Unrat é o resultado de uma paixão alucinada por Lola-Lola, uma dançarina de cabaré, “O Anjo Azul”, que em dois anos de convívio destrói a sua reputação, suas finanças e o seu amor próprio. De homem respeitado e temido, ele se transforma num palhaço, serviçal de Lola e sua trupe de companheiros suspeitos, e desliza progressivamente para a humilhação, a loucura e a delinquência. Haddad, na sua atual aventura política, lembra o professor que liquida a sua honra a serviço de Lola-Lola. Anulou a própria personalidade, e assumiu publicamente o papel de pano de estopa de um ex-presidente da República que está na cadeia ─ e se mostra disposto a qualquer extremo para escapar à punição dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro a que foi condenado. Haddad é o candidato do PT na vida real, pois o seu líder está impedido pela Lei da Ficha Limpa de disputar a eleição. Mas não pode dizer que é candidato enquanto o chefe não mandar ─ coisa que, nos seus cálculos, deve demorar o máximo possível de tempo para lhe render o máximo possível de lucro na vida pessoal.
Ninguém está dizendo aqui que a comparação é entre o caráter do professor Unrat e o caráter de Haddad. Unrat, no fundo, não era um homem bom, e tinha uma inclinação fatal para a vida torta. Haddad, ao contrário, manteve até agora uma postura de integridade, respeito às leis e boa educação em sua vida pública e pessoal ─ justamente o oposto do que tem sido há anos a conduta exibida pelo grande líder. Mas ao aceitar na frente de todo mundo o papel de objeto inanimado, sem vontade própria e disposto a tudo para servir aos interesses de um homem que pensa unicamente em si mesmo, Haddad está descendo ladeira abaixo, como no tango de Gardel. Tornou-se um cúmplice integral do grupo de arruaceiros que está no comando do partido. É o instrumento-chave da tentativa de sabotar a eleição com a farsa do “duplo cenário”, da litigação judiciária de má fé, da “intervenção da ONU”, da foto do não-candidato na urna eletrônica e tudo o mais que possa fraudar o processo eleitoral com a produção de desordem. Enfim, ao oferecer-se como voluntário para a posição de “poste”, está contribuindo diretamente para destruir o futuro de seu partido. Cuesta Abajo acaba mal, é claro, como a história do “Anjo Azul”. No tango, o homem apaixonado fala do amor de sua vida ─ que era como un sol de primavera, mi esperanza, mi pasión … Mas as ilusões terminam, e ahora, cuesta abajo en mi rodada, como diz, o amante lamenta ter acabado triste en la pendiente, solitário y ya vencido. O que lhe sobra é o sonho con el tiempo viejo que hoy lloro, y que nunca volvera. Está bom assim ou precisa mais, em matéria de tristeza? Está bom assim.
Fonte: “Veja”, 23/08/2018