Pareceu um governo de verdade, não apenas pelo conteúdo da reforma da previdência, coerente e ampla, mas também pelo modo como a equipe econômica a apresentou, competente e amistosa com a imprensa.
Diferente, para melhor, mas muito diferente do governo que aparece nos áudios da conversa entre Jair Bolsonaro e Gustavo Bebianno, conhecidos um dia antes da apresentação da reforma previdenciária. Na conversa, exibe-se um presidente que divide a imprensa entre amigos e inimigos, se ocupa de assuntos sem nenhuma importância e ainda assim o faz de maneira frequentemente agressiva e rancorosa. O então ministro até tenta segurar as pontas, mas jamais parece uma alta autoridade encarregada das complexas relações com o Congresso.
Já ontem, Bolsonaro agiu como presidente. Foi ao Congresso levar a proposta de reforma, admitiu que estava errado quando, como deputado, votara contra várias propostas de teor parecido e ainda delegou a divulgação a um time competente, o mesmo que preparou os projetos, o time de Paulo Guedes.
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Já se sabia que há vários governos em formação, mas os últimos dias proporcionaram uma demonstração prática desse processo. Várias demonstrações, aliás.
Combate à corrupção, por exemplo. Os projetos levados ao Congresso pelo ministro Sérgio Moro também têm a cara de um governo de qualidade. Pode-se até discordar – e há objeções dos dois lados, um achando muito rigoroso, outro menos – mas não se pode negar que se trata de uma peça jurídica consistente.
Também foi competente o modo de preparação e apresentação. Moro, assim como Guedes, conversou com lideranças políticas, negociou, ouviu setores sociais.
Por outro lado, aparecem o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o deputado Luciano Bivar, presidente do PSL, partido de Bolsonaro, envolvidos em denúncias de plantar laranjais nas eleições. Foi indicado líder do governo o senador Fernando Bezerra Coelho, legítimo representante da velha política, participante de administrações à direita e à esquerda (incluindo dois anos como ministro de Dilma) e alvo de inquéritos na Lava Jato. E sem contar que o senador Flavio Bolsonaro está longe de ter explicado suas finanças e a atuação de seu assessor Fabrício Queiroz.
Qual governo prevalecerá? Qual presidente? Reparem que ainda ontem, depois da solenidade em que entregou a reforma na Câmara dos Deputados, Bolsonaro voltou ao seu local preferido, as redes sociais, para tuitar em defesa de Carlos Bolsonaro – o principal executor da lamentável operação de fritura de Bebianno, o mais agressivo nos ataques à imprensa, o mais disruptivo e que vinha sendo alvo de críticas generalizadas no ambiente político de Brasília.
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Querem outra divisão? O presidente chamando a “Globo” de inimiga e o porta-voz, Rego Barros, dizendo que o governo tem o maior respeito por toda a imprensa e não vê inimigos ali.
Tudo considerado, a condição essencial para que disso tudo aí surja um governo de verdade é a aprovação da reforma da previdência e da legislação de combate à corrupção. Ou seja, a prevalência da dupla Guedes/Moro.
Dizem que isso causa ciúme nos outros governos, mas se essa bronca der em sabotagem, vai tudo por água abaixo.
Tem mais: a aprovação da reforma da previdência já não é suficiente para desfechar uma onda de novos investimentos. A queda da reforma – ou a votação de uma proposta desidratada – derrubará a confiança e, pois, a economia. A aprovação preserva a confiança na capacidade da administração de colocar ordem nas contas públicas. Mas para o retorno dos investimentos, especialmente dos estrangeiros, continua faltando um grande programa de privatizações e concessões, e mais as medidas microeconômicas para destravar os negócios.
Para a manutenção de apoio social, vale a aprovação do pacote anticorrupção.
Podem conviver os vários governos?
Difícil. Aquele dos áudios e correlatos mina a confiança e assusta os políticos, deputados e senadores, que se sentem ameaçados no exato momento em que são chamados a aprovar as reformas, algumas contra interesses pessoais de muitos deles.
Precisa-se de uma dupla Guedes/Moro para a articulação política. E mais do bom senso, pois é, mais essa, do lado militar.
Fonte: “O Globo”, 21/02/2019