A condenação em segunda instância do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva torna nebuloso o cenário eleitoral. Tanto jurídica quanto politicamente, é incerto se ele será candidato. Se for, as pesquisas de opinião, ainda que prematuras, sugerem um segundo turno entre Lula e o deputado Jair Bolsonaro. Ambos são vistos como extremistas. Partidários de um apontam o outro como uma ameaça à democracia. Quem oferece risco maior, Lula ou Bolsonaro?
Um livro recém-lançado nos Estados Unidos ajuda a responder à questão. Há mais de duas décadas, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, da Universidade Harvard, estudam o recuo da democracia no planeta – da Rússia de Vladimir Putin à Hungria de Viktor Orbán; do Chile de Augusto Pinochet à Venezuela de Hugo Chávez. “Ditaduras descaradas – na forma de fascismo, comunismo ou regimes militares – desapareceram na maior parte do mundo”, escrevem em How democracies die (Como morrem as democracias). “Democracias ainda morrem, mas de modo diferente.”
Desde o fim da Guerra Fria, as rupturas são causadas não mais por golpes violentos, à Fidel ou Pinochet. Os próprios governantes eleitos é que se encarregam de minar a democracia aos poucos. “Como Chávez na Venezuela, líderes eleitos subverteram as instituições democráticas na Geórgia, Hungria, Nicarágua, Peru, Filipinas, Polônia, Rússia, Sri Lanka, Turquia e Ucrânia.” Procuram sujeitar o Judiciário, calar a imprensa e solapar a tolerância recíproca entre adversários políticos, o autocontrole no exercício do poder e as regras não escritas, essenciais para o funcionamento do jogo democrático.
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Para Levitsky e Ziblatt, nem a democracia americana está a salvo. Os dois argumentam que ela já apresentava sinais de fraqueza antes da eleição de Donald Trump e, com ele, enfrenta uma ameaça inédita. É uma tese discutível. Por mais que Trump se esforce, é impossível avaliar suas inclinações reais ou o rumo do país com apenas um ano de governo. Até agora, as instituições continuam a funcionar. Mesmo assim, o arcabouço teórico que Levistky e Ziblatt usam para analisar Trump é útil. Com base num trabalho publicado em 1978 pelo cientista político Juan Linz, os dois resumem as tendências autoritárias a um conjunto de quatro quesitos, que pode ser aplicado a qualquer político – em especial, a Lula e Bolsonaro:
1. Comprometimento com as regras do jogo democrático – Nem Lula nem Bolsonaro rejeitam a Constituição ou expressam o desejo explícito de violá-la. Mas nenhum dos dois refuta seus partidários quando estes o fazem. Os de Bolsonaro falam em intervenção militar e contestam resultados das urnas eletrônicas. Os de Lula ameaçam uma insurreição caso ele seja impedido de concorrer. Neste quesito, cada um marca um ponto.
2. Negação da legitimidade dos oponentes – Na narrativa rocambolesca urdida por Lula e pelo PT, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff foi um golpe, o governo do presidente Michel Temer é ilegítimo, a Operação Lava Jato resulta de uma conspiração das multinacionais para dominar o pré-sal e apenas a vitória de Lula – ainda que contra a decisão da Justiça – resgatará a democracia no Brasil. Nem os partidários mais paranoicos de Bolsonaro produziram fábula semelhante. Neste quesito, ponto para Lula.
3. Tolerância ou encorajamento da violência – Bolsonaro já fez declarações em defesa da tortura e da violência policial como formas de combater o crime. Sua base de sustentação são forças regulares da Polícia Militar e do Exército, cujas ações ele parece considerar acima da lei. No campo petista, persiste a tolerância histórica com a violência promovida por movimentos sociais, grupos terroristas e ditaduras de esquerda mundo afora. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, declarou que, para prender Lula, seria preciso primeiro “matar muita gente”. Não pode haver desafio mais claro à lei. Neste quesito, novo empate.
4. Restrição às liberdades civis – Bolsonaro estrilou quando a Folha de S.Paulo investigou o crescimento no patrimônio de sua família. Não perde chance de atacar veículos de comunicação que o incomodam. Como Lula, dispõe de redes paralelas de informação. Exércitos de simpatizantes de ambos estão dispostos a ecoar todo tipo de fantasia em blogs e redes sociais. Só que Lula vai além: mesmo condenado diante de provas abundantes, posa de vítima da “mídia golpista”, em conluio improvável com seus adversários, Judiciário e Ministério Público. Para completar, ressuscitou a “regulação dos meios de comunicação”, abandonada em seu governo. Mais um ponto, portanto, para Lula.
Bastaria pontuar em um dos quesitos acima para um político ser preocupante para a democracia. Trump, dizem Levitsky e Ziblatt, é o primeiro presidente americano a pontuar em todos. Em matéria de autoritarismo, porém, ele ainda teria muito a aprender aqui no Brasil.
Fonte: “Época”, 28/01/2018