“Moradia não é mercadoria” é uma frase muito repetida entre ativistas em defesa da moradia popular.
Entendo aqui ‘moradia’ como unidades de habitação, principalmente casas e apartamentos. Já ‘mercadoria’ é algo produzido para ser vendido no mercado, destinado ao comércio, e que não é uso do produtor.
A vasta maioria das moradias hoje em dia pode ser considerada mercadoria, dado que é produzida e vendida por incorporadoras e imobiliárias que não moram nos edifícios que produziram. Assim, a proposta por trás dos ativistas que repetem essa frase é a de fazer com que a moradia deixe de ser produzida e vendida pelo mercado imobiliário, passando a ser planejada e distribuída pelo poder público. O objetivo seria torná-la mais acessível dado o atual déficit de moradias, que é uma das causas dos altos preços do mercado imobiliário.
Só que essa proposta não é nova. Moradia já deixou de ser mercadoria durante um momento muito peculiar da nossa história, e de forma bem documentada, na União Soviética (URSS), abrangendo várias cidades da Europa Central e Oriental durante a maior parte do século passado. Hoje, é possível entender quais foram as principais consequências dessa política.
Várias cidades da antiga URSS aboliram o sistema de preços e implementaram uma economia planejada durante um período que durou entre 45 e 75 anos. Nesse espírito, também foi abolido o mercado imobiliário. Consequentemente, o que determinava a alocação de densidades e de usos residenciais, comerciais e industriais não eram as demandas dos moradores na condição de consumidores imobiliários, mas sim decisões burocráticas feitas com o intuito de minimizar os recursos investidos em imóveis com o objetivo de prover “moradia universal”.
É difícil entender este sistema, tão diferente ele era do que estamos acostumados atualmente. Deixando de ser mercadoria, imóveis e terrenos não tinham preços. O planejamento se iniciava com estudos técnicos que determinavam a quantidade de terra necessária para construir apartamentos e fábricas. Ato contínuo, uma vez que a terra fosse alocada para um determinado uso, ela não mais podia ser vendida ou alugada para um terceiro, apenas devolvida para o governo caso nada fosse construído.
Esse princípio teve um grande impacto em indústrias que sofriam mudanças tecnológicas: fábricas se expandiam, mas não podiam se realocar, pois teriam um custo de mudança de terreno que não podia ser compensado por uma venda da fábrica original. Afinal, fábricas também não podiam ser tratadas como mercadorias.
Mesmo quando problemas tecnológicos e operacionais obrigavam administradores a mudar de local, os terrenos deste anel industrial não eram reciclados, mas sim mantidos industriais, só que com menos empregos e atividade industrial. A política industrialista da União Soviética levou a uma extrema concentração de indústrias dentro da região urbanizada.
Por exemplo, em Moscou, 32,5% da cidade construída é usada para fins industriais (embora parte esteja abandonada atualmente, pois a cidade ainda não conseguiu se regenerar). Em Paris, Seoul e Hong Kong são apenas 5%.
O mesmo processo era feito na determinação do uso comercial. É importante lembrar que, na verdade, não deveríamos chamar tal atividade de “comércio”, mas simplesmente de “serviços”, pois o comércio (pelo menos nas vias formais, já que o chamado “mercado negro” funcionava de forma abrangente) não existe quando se abole o conceito de mercadoria. Assim, muitos serviços como bancos, corretoras de imóveis, seguradoras etc. simplesmente não existiam nessas cidades. Adicionalmente, muitos serviços de educação, saúde e distribuição de alimentos eram feitos dentro de instalações industriais e não necessitavam de uma alocação específica de uso do solo na cidade.
A alocação de moradia também seguia a mesma lógica, mas com um pequeno detalhe: a quantidade de terra alocada para uso residencial foi mudando ao longo do período soviético de acordo com o desenvolvimento de tecnologias que permitiam um melhor aproveitamento da terra: a verticalização. Sistemas pré-fabricados de construção, que se tornaram universais para a construção de moradia nos países da Europa Central e Oriental dos anos 1960 em diante, permitiram blocos de apartamentos mais altos, diminuindo a necessidade de terra do ponto de vista dos planejadores e gerando cada vez densidades mais altas.
Os planejadores soviéticos avaliavam apenas quantitativamente as necessidades de moradia da população, sem se importar com a localização das construções na cidade. Ao mesmo tempo, os grandes terrenos em que ainda não haviam sido feitas construções eram encontrados mais facilmente nas periferias. Isso fez com que as zonas residenciais mais recentes — e mais distantes do centro — normalmente tivessem densidades mais altas por causa das alturas mais altas de edifícios que foram possibilitados ao longo do tempo.
O resultado urbano final em cidades nas quais isso teve maior impacto é o caminho oposto ao da cidade europeia tradicional, que possui maior densidade próximo do centro histórico — de maior demanda por moradia e por serviços — e que vai gradualmente diminuindo à medida que dele se distancia.
Moscou, onde essa política teve maior impacto, apesar de ainda possuir um centro histórico que concentra empregos e serviços, é uma das únicas cidades do mundo que possui periferias mais densas que as áreas centrais.
Ineficiência urbana
Uma das consequências urbanísticas deste tipo de planejamento foi o aumento das distâncias de deslocamento, uma vez que os moradores das periferias são obrigados a se deslocarem à área central onde se concentram os serviços. Se a maioria dos moradores se concentra nas periferias, o resultado agregado será pouco eficiente.
Se compararmos Moscou a Paris, a qual teve uma alocação espontânea de moradia e de serviços durante a maior parte do seu desenvolvimento urbano, a primeira possui 75% da área da segunda, mas com uma distância de deslocamento dos moradores 5% maior. Brasília, que também teve um planejamento totalmente centralizado, tem um desempenho ainda pior neste indicador: a distância de deslocamento dos seus moradores é semelhante à de Nova York, mas a capital brasileira tem uma área construída 10 vezes menor.
O custo de oportunidade de se manter terrenos abandonados ou subutilizados em regiões centrais da cidade — principalmente industriais, no caso de Moscou — também é muito significativo, contribuindo para a escassez de terra para moradia. Citando a economista Emily Washington, “Não faz sentido o uso industrial em terrenos onde as pessoas estão dispostas a pagar um prêmio para ter moradias”.
O trabalho do urbanista Alain Bertaud mostra que, em 1991, quando o mercado imobiliário foi gradualmente sendo reintroduzido na Rússia após o fim da União Soviética, os preços de moradias próximas ao centro foram aumentando, mostrando uma clara falta de oferta de moradia nestes locais.
Escassez, burocracia e mercado negro
A falta de um sistema de preços — que é crucial para transmitir informações sobre oferta e demanda — também levou a uma grande escassez de moradias, principalmente durante a primeira metade do período soviético.
Durante a era Stalin, entre 1927 e 1955, a URSS não aumentou os baixíssimos índices de área construída per capita que já existia em 1917, de 4m2. A coabitação era frequente e necessária, com cerca de 35% da população vivendo em apartamentos compartilhados até o final da URSS. As filas de espera para se conseguir moradia levavam em torno de 10 anos. Era tanta burocracia envolvida no processo, que o governo russo identificou 56 tipos diferentes de moradia que poderiam ser conseguidos por 120 procedimentos distintos.
Dado que a compra, venda e troca de moradias era proibida (pois, lembremos, deixaram de ser mercadoria), estabeleceu-se um mercado negro de sublocação, que alguns autores estimam ter abrangido 10% de todas as unidades da cidade.
Também era frequente a transferência ilegal de endereço, já que também era necessário esperar alguns anos nas filas de registro para formalizar a troca. Apesar de não existirem estatísticas oficiais a respeito de moradores de rua, relatórios secretos da URSS reportam cifras em torno de 500 mil pessoas.
Mesmo assim, as principais cidades, como Moscou, eram símbolos para o resto do país e para o resto do mundo, recebendo um investimento desproporcionalmente maior em moradia quando comparada às demais cidades soviéticas. A quantidade e a qualidade da moradia produzida, por exemplo, em zonas rurais e industriais na Sibéria eram muito inferiores às dos centros urbanos. No entanto, para piorar a situação, o controle quantitativo de moradia e a constante escassez nas cidades devido à rápida industrialização criaram a política da propiska, uma espécie de passaporte migratório interno, que proibia os moradores de zonas rurais de migrarem para os centros urbanos.
O fim da arquitetura
Uma das propostas da política de moradia da URSS era promover a habitação coletiva e a igualdade de moradia para todos. Nesse sentido, havia um modelo de bloco habitacional a ser seguido durante cada época, e que não levava em conta as preferências e particularidades dos cidadãos. Isso resultou na pasteurização modernista da cidade soviética, a repetição de projetos assépticos visando à redução numérica do déficit habitacional — o qual, mesmo assim, não foi resolvido.
No contexto soviético, pode-se dizer que isso decretou o fim da arquitetura residencial, dado que uma única solução era escolhida para resolver a necessidade de todos.
Muitos podem criticar as “selvas de concreto” de cidades como São Paulo ou Nova York, nas quais há uma variação radical no tamanho, forma e estilo de cada projeto arquitetônico. Mas o fato é que sua variabilidade de edifícios — mesmo que dentro das legislações estabelecidas — permite que cada cidadão possa escolher a arquitetura de sua preferência. O mercado imobiliário, neste cenário, visa a atender as diversas preferências de seus consumidores, as quais também mudam de forma dinâmica junto com os hábitos e com as tecnologias existentes a cada época.
Um forte indício disso é que, com o fim da vontade de se morar longe das regiões centrais — tendência essa que impulsionou o espraiamento urbano até os anos 1980 —, hoje existe uma tendência forte entre incorporadoras de produzir apartamentos menores, bem localizados e com um relacionamento mais conectado entre a edificação e a cidade. Tanto Nova York quanto São Paulo são protagonistas em seus respectivos países em liderar este movimento de transição.
Moradia é mercadoria
O relato sobre moradias na União Soviética mostra empiricamente algumas das consequências negativas de se fazer com que a moradia deixe de ser tratada como mercadoria. É importante ressaltar que os problemas observados não foram resultado de falhas técnicas no planejamento ou de um conceito errôneo de moradia adotado, mas sim da eliminação do sistema descentralizado de preços, o qual, quando funciona livremente, gera feedbacks constantes de informação entre oferta e demanda.
Por meio do sistema de preços, cada cidadão, ao voluntariamente alugar, comprar, desenvolver (ou não) um determinado imóvel em uma determinada localização, e fazer dele o que mais lhe aprouver, está fornecendo ao mercado informações cruciais sobre sua preferência. E, ao fazer isso, ele envia aos outros indivíduos e empresas informações instantâneas sobre a situação deste mercado.
Tentar abolir novamente o mercado imobiliário com o intuito de planejar a cidade de uma forma diferente — e ao gosto de planejadores e burocratas — gerará problemas da mesma natureza do modelo imobiliário soviético, pois tal medida arbitrária não responde às demandas da população de forma dinâmica. Imóveis vazios ou subutilizados continuarão existindo, embora dispersos pela cidade em vez de estarem concentrados em uma região inteiramente zoneada.
O déficit habitacional e os altos valores das moradias, alvos da luta pela moradia popular, deveriam ser atacados em sua raiz, sem alterar a característica dinâmica de preços. O que, afinal, torna nossos imóveis tão caros? Um estudo realizado em 2005 pelos economistas Edward Glaeser e Joseph Gyourko intitulado “The Impact of Zoning on Housing Affordability” aponta forte correlação entre regulação do uso do solo e acessibilidade à moradia, podendo resultar em um aumento de até 50% no valor imobiliário de uma determinada região.
São inúmeros os motivos que contribuem para elevar os preços de moradia, desde restrições artificiais de oferta (limites de densidade; de altura de edificações; recuos de ajardinamento; leis de zoneamento) a alterações nos projetos (como número obrigatório de vagas de garagem e leis que incentivam a subutilização dos térreos), passando por custos na atividade de incorporação (custos legais de passar pela aprovação dos órgãos públicos; custo do risco legal de legislações que não deixam claro o que pode ou não ser feito em um determinado terreno; custo de oportunidade do tempo entre a compra do terreno e espera de um determinado projeto ser efetivamente aprovado na Prefeitura; impostos e encargos trabalhistas)
Fonte: “Caos Planejado” ,28/05/2015.
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