Confirmada a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro para a embaixada brasileira em Washington, ele ainda terá de passar por sabatina na Comissão de Relações Exteriores do Senado, depois seu nome será submetido à aprovação no plenário da Casa. Em geral, é um procedimento meramente protocolar. Mas não no caso do filho do presidente.
De tão raras, as rejeições de embaixadores no Senado são consideradas eventos excepcionais. Dois casos no Brasil democrático ocorreram com presidentes que mantiveram relações tensas com o Legislativo e não terminaram seus mandatos: Jânio Quadros e Dilma Rousseff.
Em 6 de junho de 1961, por 26 votos a 22, o plenário do Senado rejeitou a indicação do empresário José Ermírio de Moraes, fundador da Votorantim, para a embaixada do Brasil na então República Federativa da Alemanhã, em Bonn. Só em maio de 2015, quando por diferença de um voto (38 a 37) derrubaram a nomeação do diplomata Guilherme Patriota para a embaixada brasileira na Organização dos Estados Americanos (OEA), os senadores voltariam a vetar outro embaixador.
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A indicação de Patriota, irmão do ex-chanceler Antônio Patriota, foi vista como recado a Dilma. Ele trabalhara com o assessor internacional da Presidência Marco Aurélio Garcia e fora chefiado pelo próprio irmão na representação junto às Nações Unidas. Durante sua sabatina, adotou uma postura de confronto e derrapou nas respostas.
“Ele poderia melhor representar a Venezuela que o Brasil”, comentou na ocasião o senador paraibano Cássio Cunha Lima, da oposição. Na mesma sessão, contudo, os senadores aprovaram com ampla margem outro indicado por Dilma para a embaixada de Paris. O conflito em torno das relações internacionais do Brasil não prosperou.
O caso do governo Jânio tem mais em comum com a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro à embaixada em Washington. Ermírio não era diplomata de carreira, apenas um industrial de sucesso e amigo de Jânio, a quem recebia com frequência na sua casa de praia em Bertioga, no litoral paulista. “Foi vetado justamente pelo fato de ser íntimo do governante que desprezava o Congresso”, contam Duda Hamilton e Paulo Markun em 1961 – O Brasil entre a ditadura e a Guerra Civil.
Várias características aproximam Jânio de Bolsonaro. Primeiro, o populismo. Jânio queria governar em relação direta com o povo e transmitia instruções por meio de seus proverbiais “bilhetinhos” (houve 1.534 em seu governo). Segundo, a retórica conservadora. As principais bandeiras eleitorais janistas foram as mesmas de Bolsonaro: o combate à corrupção e a austeridade.
Terceiro, a dificuldade de articulação política no Legislativo. Eleito pelo pequeno PTN, jovem partido que não comandava mais de 2% das cadeiras no Parlamento, Jânio dependia de um arco extenso de alianças para governar, reunindo siglas mais fortes como UDN, PDC, PSB ou PSD. “Não tinha estômago para suportar o jogo político da democracia, que submete qualquer determinação a um longo processo de debate e negociação no Legislativo”, dizem Hamilton e Markun.
Finalmente, a tentativa, logo ao assumir o governo, de imprimir um novo rumo à política externa brasileira e dar uma guinada na postura então seguida pelo Itamaraty. Com uma diferença: Jânio não empunhava as bandeiras da direita nacionalista como o clã Bolsonaro. Ao contrário, preconizava o afastamento dos americanos e uma inusitada aproximação do mundo socialista.
“Suas posições políticas tiveram forte influência do ideário sociopolítico cristão e da visão de mundo do Ocidente, ainda que criticasse fortemente o colonialismo americano e europeu”, afirma o cientista político João Catraio Aguiar na análise A influência legislativa sobre a política externa de Jânio Quadros, publicada no ano passado.
Na época, relata Catraio, os temas mais discutidos eram as relações com os países ocidentais e a aproximação dos países socialistas. Jânio admirava líderes independentes como o egípcio Gamal Abdel Nasser ou o iugoslavo Josip Broz Tito. Adotou uma postura mais crítica ao alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos. Aproximou-se do Movimento dos Não-Alinhados, condecorou o cubano Che Guevara em Brasília, foi recebido por Fidel Castro em Havana e abriu várias embaixadas brasileiras em países africanos. O então vice João Goulart, do esquerdista PTB, fez uma longa visita à China comunista.
Seu chanceler, Afonso Arinos de Melo Franco, derivava da mesma matriz católica de Jânio, que criticava capitalismo e comunismo. Mas, ao contrário dele, tinha raízes udenistas e ainda acreditava que o Brasil deveria permanecer alinhado com as potências ocidentais. Havia um contraste entre a postura janista na política externa, a de seu próprio chanceler e a dos partidos de que dependia para governar.
Por isso mesmo, a política externa se tornou um foco frequente de embates no Parlamento, culminando na rejeição da indicação de Ermírio. “A vitória de Jânio nas urnas foi o suficiente para disparar o gatilho da desconfiança e da vigilância sobre as ações externas do novo presidente”, relata Catraio.
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O Congresso passou a convocar quase todo mês o ministro das Relações Exteriores para longas sabatinas. Afonso Arinos tentava explicar as relações com Cuba, a neutralidade proclamada na Conferência do Cairo, as condições para intervenção noutros países, a necessidade de comércio externo diante da industrialização e, para isso, de aproximação da Alemanha Oriental, de países africanos, da China e da União Soviética.
“Não reinou o ‘interesse nacional’, mas a estratégia partidária, principalmente de confronto ao governo”, conclui Catraio. “A polarização que cruzava os partidos encontrou lugar em temas como relações com o Ocidente e com os países socialistas.”
Quanto mais polarizado o Parlamento, maior a chance de que a política externa se torne uma fonte de problemas para o presidente no Congresso. A indicação de Eduardo fornece ao Senado uma moeda de troca poderosa na relação com o pai dele, ainda mais dependente do Parlamento hoje do que era Jânio em seu tempo.
Fonte: “G1”, 17/07/2019