Viena foi centro da mitologia moderna. É preciso lembrar que Sigmund Freud, o inventor de uma nova concepção humana ali floresceu? Ou basta falar da valsa que pela primeira vez permitiu que homens e mulheres pudessem dançar se abraçando frontalmente, olho no olho, num ritmo que um observador da época chamava preconceituosamente de “africano” — hipnótico, sensual e embriagador. A valsa fabricou Viena tal como o samba inventou um Brasil. Esse mesmo Brasil que roubou o futebol dos seus “colonizadores” ingleses e, no domingo que passou, deu o baile no time austríaco em plena Viena, mais uma vez desbancando as teses de uma velha teoria colonialista. Essa sim, tão vira-lata quanto os seus inventores. Foi quando a Viena da valsa sambou.
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René Descartes inventou o “penso, logo existo”. Freud desmantelou o axioma, afirmando o oposto: quanto mais penso, menos existo; quanto mais controlo minha consciência reprimindo o profundamente desejado, mais faço o indesejado. Quem nos controla é (também) e sobretudo o (in) consciente. A ele pertence esse Brasil oculto que o futebol revela em toda a sua plenitude, talento e orgulhosa honestidade. Tudo o que vergonhosamente tem estado ausente de um mundo público dominado por administradores desonestos — “políticos” que nos levam ao jogo interminável da derrota. Justamente os que afirmam ser o futebol (e não o populismo autoritário e mendaz) o ópio do povo…
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Freud não inventou o reino do esporte e do futebol. Mas asseguro que o esporte é um mecanismo mais do que adequado para viver as agruras do mundo. Nele, perdemos honradamente e vencemos sem arrogância. Pela mesma pauta, podemos pensar em todos os condicionais sem sermos filósofos. Para mim, não há melhor educador do “princípio de realidade” do que o futebol que nos ensina com a frustração, com a compulsão, com as doenças e com a derrota.
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Por que o mundo não é como queremos? Ora, diz a cartomante, porque temos a capacidade de pensar alternativas. Quem pensa em ganhar, pensa em perder, embora a consciência, como o coração, possa ter razões que, como ensinou Pascal, ele não conheça. O desejo do triunfo ocorre com o jogo. Ele é oposto à sociabilidade brasileira corrente do “mais ou menos”. No esporte e na Copa, há o tudo ou nada.
Deus pode ser ou não ser brasileiro…
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Ao refletir sobre o futebol, assinalei essa ausência do “mais ou menos” que exige um novo horizonte na vitória ou derrota. Como o melhor professor de democracia do Brasil, o futebol obriga ao desempenho — a resultados. E, pior que isso, ele tem como premissa uma igualdade absoluta. No futebol — ao contrário da política — sabemos de tudo, menos do resultado. Ademais nele não cabem os triunfos eternos. No Brasil, os ladrões e os ricos jamais perdem; no futebol, os marginalizados viram, por conta exclusiva do seu talento, reis e milionários.
O interesse pelo futebol corre em paralelo à busca pela igualdade como um valor num sistema profundamente desigual. É isso que proporciona a experiência de igualdade, de mobilidade, de vitória e, hoje em dia, de transparência junto do resgate de uma honra coletiva aviltada e perversamente roubada por quem tinha como dever preservá-la.
O populismo e o messianismo negam a esfera do esporte que harmoniza carisma, patrimonialismo e um conjunto de regras que valem para todos, coagindo dirigentes, jogadores, árbitros, comentaristas e torcedores.
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Um mesmo conjunto de regras produz resultado diversos. Ocorrendo em tempos e espaços demarcados, o esporte abre uma trégua entre países e pessoas ricas ou pobres, fracas ou poderosas; ao mesmo tempo em que concilia o jogador excepcional com o seu time. Há um confronto consciente de uma equipe contra outra; mas há também o confronto inconsciente de ambas as equipes com as circunstâncias que elas criam durante a partida.
E assim vai o futebol criando eventos que se transformam em estruturas e estruturas que engendram eventos e ciclos cuja determinação é impossível fora do generoso eixo do “destino”, e do dualismo “sorte/azar”. De qualquer forma, prefiro mil vezes os gastos com uma Copa e uma Olimpíada do que com uma guerra ou roubalheira política como tem sido o caso do Brasil.
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Quebramos a invencibilidade dos austríacos que ganharam da Alemanha. Ambos falantes de uma língua que muitos acham difícil. Tão complicada que só os mais inteligentes a aprendiam. Vejam até onde ia a nossa autodepreciação e, pior que isso, a nossa burrice.
Fonte: “O Globo”, 13/06/2018