A América Latina passará em 2018 por teste de fogo eleitoral. Três dos mais importantes países terão eleições e em todos os casos os riscos de turbulência são grandes. A Colômbia, ainda envolta com as feridas não cicatrizadas das Farcs, terá eleição com um número elevado de candidatos. O México, com a provável vitória de Obrador, traz o risco de as políticas econômicas voluntariosas voltar ao poder. Obrador tem dado sinais de seguir a linha Lula de 2002, mas, aqui como lá, pode ser que seja mais jogo de cena do que realidade. No Brasil, a encenação durou pouco mais de dois anos, quando o governo voltou as suas origens equivocadas de condução da política econômica. Além desses riscos, ter Trump nos EUA e Obrador no México é sinal certo de tensão.
E no fim do ano, o Brasil encerra o período eleitoral latino com a eleição mais incerta desde o fim da ditadura. Além do risco em si dos candidatos com discurso econômico disparatado, a insegurança de alguém sem liderança política ser eleito é muito grande.
A essas incertezas juntamos as diversas dificuldades que a democracia liberal ao redor do mundo tem tido para evitar o avanço de candidatos contra o establishment. De Trump nos EUA, a Erdogan, na Turquia e Orbán na Hungria, vemos boa parte da população mundial insatisfeita com os rumos que o modelo democrático atual tem seguido.
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Ao mesmo tempo, essa insatisfação tem sido atiçada pelas redes sociais. Já não é novidade que passamos dos tempos otimistas em que as redes seriam elemento de construção da sociedade para um momento mais obtuso, em que elas se transformaram em máquinas de polarização e fake news.
O papel eleitoral delas sobre um ou outro candidato é menos relevante nessa questão. Ou seja, se candidato A ou candidato B tem mais ou menos presença nas redes parece menos relevante do que o fato em si de que as redes permitiram que as pessoas vocalizassem seu estado de espírito.
Diversos estudos têm mostrado com preocupação que a evolução das redes e da tecnologia em geral pode ainda nos colocar em maus lençóis no futuro. Cito dois que me chamaram a atenção e que vale a leitura.
Yascha Mounk é um jovem professor de ciência política de Harvard que lançou um livro com título um tanto quanto assustador: The People vs. Democracy: Why our Freedom is in Danger and How to Save it (“As pessoas versus Democracia: por que sua liberdade está em perigo e como salvá-la”, em tradução livre). Em que pese o tom dramático, o ponto relevante é que dar de barato que a democracia liberal tal qual a conhecemos continuará inviolável não parece real. Exemplos pelo mundo pululam de países que tem diminuído as liberdades individuais (o liberal do termo democracia liberal), como a Hungria e a Polônia como casos mais recentes, sem falar das tradicionais China e Rússia. Ao mesmo tempo, a democracia tem diminuído seu poder de fogo pelos inúmeros intermediários que surgiram ao longo das décadas entre a vontade popular e a política pública final. Basta aqui lembrar os diversos lobbies atuantes nas economias desenvolvidas até os próprios organismos internacionais. Supostamente essa seria a mensagem de um Trump agressivo com uma OMC que, na sua visão, iria contra os interesses do povo americano.
O papel da tecnologia aqui nessa visão pessimista é de aproximar aqueles que não tinham voz daqueles que tem e tentam ir contra a ordem. Yascha cita um estudo que mostra que a introdução de telefones celulares em regiões remotas da África que antes não tinham contato com essa tecnologia aumentou os níveis de violência política.
Não precisamos ir tão longe, bastando ver quão agressivo tem sido a disputa política nas redes sociais, incitadas muitas vezes pelos próprios partidos. Não tem sido raro encontrar pessoas que terminaram amizades longevas por diferenças políticas, muitas vezes iniciadas na terra selvagem das redes.
Ponto talvez ainda mais preocupante é o levantado por Niall Ferguson em seu recente livro, The Temple and The Square. Sua tese é que nada do que estamos vivendo é novo, apenas a velocidade das mudanças que é maior. Sua volta à época da invenção da impressão em papel por Guttenberg faz lembrar que a evolução do papel ajudou a disseminar ódios e criar redes sociais que tinham capacidade de mudar os rumos da sociedade. Ferguson cita, por exemplo, que em terras em que havia mais imprensa e livros era onde havia mais caça às bruxas nos Estados Unidos. Fico na correlação, mais do que na causalidade direta imposta pelo autor, mas o fato é que a possibilidade da disseminação das verdades particulares com consequências nefastas não é necessariamente nova.
Que mar de pessimismo, não? E as soluções dos autores nos permitem continuar nadando em incertezas. Para Mounk, domesticar o nacionalismo exacerbado, que nada mais é do que incluir os atuais excluídos do sistema, no caso em sua maior parte os imigrantes. Como fazer isso é o dilema. Para Ferguson, regular os conglomerados de TI será inevitável, mas mesmo assim, talvez um paliativo em um movimento incontornável. Regular apenas evita potencialmente o fortalecimento de monopólios, mas não mata o problema. A regulação das majors de petróleo nos EUA no final do século XIX afinal não matou o produto, pelo contrário, o tornou ainda mais interessante.
Talvez o problema não tenha solução de fato e caminhamos para tempos mais difíceis para a democracia mundial. Mas da mesma forma que uma possível crise possa estar vindo rapidamente, pode ser que a própria tecnologia seja a porta de saída mais rápida caso a tempestade queira se alongar por mais tempo.
No final, aqui no nosso quintal é melhor ficarmos com as barbas de molho para essa sociedade descontente com a política. Os resultados de um voto berrado nas redes sociais poderão levar a uma constante instabilidade e um enfraquecimento da democracia. Mais do que as eleições deste ano na América Latina, acompanhar o apaziguamento dessa sociedade ou não nos próximos anos será essencial.
Fonte: “Exame”, 19/04/2018