Depois de um ano excessivamente turbulento e tenso, parece que os últimos meses serão bem mais calmos. Boa parte dessa calmaria deriva das boas escolhas que, em geral, Bolsonaro e Paulo Guedes têm feito em suas equipes, e pelo fato de a esquerda ter aceitado a derrota com mais tranquilidade. Não teve nenhum arroubo contra o novo governo, até porque o petismo saiu machucado com as novas derrotas que se seguiram para as lideranças do partido.
Os “Chicago Oldies” que chegam para comandar a economia têm a chance de ouro de uma transformação relevante na economia. O excesso de liberalismo impossível que aparecia nos primeiros textos de Paulo Guedes virou algo mais crível, como no caso das privatizações. Sabe-se quase impossível hoje pensar em vender as joias da coroa estatais, como Banco do Brasil, Caixa Econômica e Petrobrás, mas o processo será paulatino, começando por vender braços dessas instituições, como distribuidoras, seguradoras e abrindo o capital, como deve ser o caso da Caixa.
Há sinais positivos também vindo da necessária abertura da economia. Feita em conjunto com um regime fiscal permanentemente mais crível e concessões que baixem o custo de infraestrutura, será possível dar competitividade para a indústria em troca da queda de tarifas ao longo dos anos. A questão aqui é ver a abertura como uma troca em que o apoio aos projetos reformistas do governo que baixariam juros e custos de logística permitiriam que a queda de tarifas não fosse tão prejudicial para a indústria. Pelo contrário, tem o potencial de aumentar em muito a produtividade daquelas sem condições de fazê-lo. Deixar a economia fechada para proteger indústrias que só fazem aumentar o custo doméstico é que não tem mais sentido.
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Mas há desafios ainda maiores. Esperava-se que a reforma tributária siga a linha preconizada pelo projeto de Bernardo Appy, que permite uma simplificação agressiva de impostos, com um longo período de ajustes para os estados se acomodaram na fase de transição do ICMS de origem para destino. Não parece que essa será a linha seguida ao se escolher Marcos Cintra como liderança na questão tributária. A tendência é de embates internos levarem a dificuldade de entendimento sobre a base de arrecadação, se sobre valor adicionado ou sobre transações financeiras, como parece ser o caminho seguido por Cintra em seu histórico. Talvez essa seja uma reforma que acabe sendo encolhida e perdida a chance de evolução concreta para um regime melhor.
A grande incógnita, de fato, é a reforma da Previdência. Há muita dúvida ainda sobre a capacidade política do governo de aprovar a reforma na agressividade que se precisa. A cúpula política parece não ter a convicção que Temer tinha, e que só não conseguiu aprová-la por conta do escândalo político em que se meteu em maio do ano passado.
Essa reforma é um divisor de águas para o governo Bolsonaro. Dela sairá o fracasso ou o sucesso do governo nos anos seguintes. Ele sabe disso. O Congresso sabe disso. Mas a tarefa dependerá de uma articulação que se mostra cada dia mais truncada. Por exemplo, não há soluções mágicas para o caso de a reforma não ser aprovada. Guedes tem sugerido que partiria para uma desvinculação completa do orçamento, o tal orçamento base zero. Mas a mesma dificuldade encontrada na PEC da Previdência seria encontrada na PEC do orçamento base zero. Não é uma alternativa crível.
O que poderia ser crível a essa altura seria uma negociação com o Congresso em outros termos. Por mais que o governo não queira negociar com os partidos, a troca poderia ser nesse caso não de votos por cargos, mas trocar um projeto por outro projeto. Por exemplo, a reforma da Previdência poderia ser encaminhada e colocada em votação em troca de uma mudança na regra do teto, uma flexibilização necessária. Quem me acompanha nos textos neste blog sabe que sempre preferi uma regra do teto mais flexível, como a chilena, do que uma tão rígida que quase certamente terá que ser mudada antes do prazo mínimo de dez anos estipulado. A ideia seria uma regra do teto baseada em estimativas de crescimento do PIB e não da inflação, que mantém uma regra de queda do gasto real inexequível para um longo período de tempo.
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Essa troca não traria reações negativas por parte do mercado pois seria lida como uma flexibilização necessária numa regra que naturalmente morreria em alguns anos, mas com o benefício de aprovar, aí sim, o santo graal das reformas que é a da Previdência. Uma troca desse tipo teria o benefício de tirar pressão na discussão seguinte que começaria sobre a exiguidade ou não da regra do teto, que, a meu ver, colocaria novo empecilho para o próximo governo ou o seguinte. Seria uma crise fiscal a menos em troca do aperfeiçoamento da regra do teto.
Esse seria o tipo de troca passível de ser negociada e levada em conjunto ao mesmo tempo no começo do ano que vem, com possível repercussão positiva na sociedade sem prejuízo ao regime fiscal. Pelo contrário, poderia ser a chance de levar a um padrão mais estável de crescimento nos próximos anos por tirar o bode da sala futuro, leia-se, a regra do teto muito rígida que temos atualmente. Isso permitiria uma queda mais rápida do déficit público, pelo crescimento mais forte e um consequente perfil de dívida positivo para os próximos anos.
Bolsonaro e Guedes têm a chance de ouro de uma transformação efetiva da economia nos próximos anos. Basta calibrar bem melhor o canal político para que isso aconteça. O drama todo é que sabemos o quão difícil será essa parte.
Fonte: “Exame”, 30/12/2018