Vem à tona a questão mais importante de todo o mandato: a discussão e aprovação (ou não) da reforma da Previdência. Aqui, vale enfatizar, desde logo, que não há outra saída para o país voltar a crescer. Só que, até aí, morreu Neves…Ou seja, a briga se dá mesmo é no varejo e não pela defesa de teses mais gerais, ainda que corretas.
Cabe chamar a atenção dos governantes para dois pontos cruciais. O primeiro é que a briga inicial maior é dentro da própria burocracia, em que a defesa dos interesses específicos pesa muito. Ali, o diagnóstico básico precisa ser definido e logo absorvido pelos atores relevantes nos órgãos públicos. Depois disso, terá de virar religião. Se não for assim, vazam-se documentos, posições alternativas e Deus sabe o que, minando a reforma nas suas entranhas.
Depois, os negociadores da reforma precisam identificar cuidadosamente um número mínimo de atores relevantes (ou seja, partes envolvidas), antes de levar ao Congresso, e partir para uma negociação prévia produtiva com eles, em que se dá algo em troca da aprovação daquilo que é mais importante para o país, pois é nesse âmbito que a aprovação (ou não) efetivamente ocorrerá. Sem isso, a briga no Congresso será inglória, pois aquela Casa virará um mero alvo para onde os que se sentirem prejudicados se dirigirão com vistas a travar a mudança.
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Falando em diagnóstico correto, os deficits do INSS e dos regimes próprios dispararam nos últimos anos, mas o maior destaque deve ser dado aos deficits dos segundos e à esfera estadual, não só por serem mais elevados, mas porque as projeções mostram que ainda vão crescer mais, se não fizermos o que precisa ser feito.
Nos estados, o “x” da questão na verdade é duplo. Primeiro, por conta disso e da recessão feroz, acrescida de fatores externos, como a queda do preço do petróleo, a maioria dos estados está quebrada no curtíssimo prazo. Se estimarmos os atrasados que os atuais dirigentes acabaram de herdar pela soma dos deficits orçamentários registrados nos balanços de 2015-2018 — em que suponho que o deficit de 2018 tenha sido o mesmo de 2017 — dá a bagatela de R$ 77 bilhões. E notem que, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, nenhum centavo de deficit poderia ser passado adiante. O quadro é tão difícil e atípico que não há como culpar e punir os dirigentes que deixaram a herança maldita.
Quase ninguém sabe que a margem de manobra dos governadores para gerir suas contas é mínima. Já mostrei aqui que o grosso das fatias orçamentárias se refere ao que chamo de “donos do orçamento”. Na parcela residual em que há alguma margem, os investimentos já foram zerados e teremos ainda de abrir um novo espaço cativo para outro “dono” que chega, a segurança. Que o diga o estado do Ceará, entre outros. Resumindo até aqui, no que se refere a ajuste fiscal, os estados estão manietados. Como não conseguem se financiar sozinhos e não emitem moeda — como a União —, só lhes restam atrasar pagamentos, algo obviamente insustentável.
A União vem tendo enormes deficits totais primários (isto é, sem incluir a parte financeira) desde 2015, em que o peso da Previdência é alto. Só não aparecem mais porque ela coloca papéis de curtíssimo prazo (quase moeda) para financiá-los, e vida que segue… Em relação aos estados, são meio que deixados à própria sorte.
Inicia-se a romaria dos novos governadores a Brasília, enquanto os habituais interlocutores do Tesouro Nacional (TN), bem no estilo do que ocorria na gestão anterior, destacam que o Programa de Recuperação Fiscal (PRF) não deverá ser flexibilizado e que os estados têm mais é que se concentrar no ajuste do gasto com pessoal, em que parecem não saber que só metade é pessoal ativo. O resto é Previdência….
Quanto ao PRF, sua aprovação foi um verdadeiro milagre, mas é capenga, exatamente pela miopia exacerbada da visão do TN. Basicamente, o PRF suspende o pagamento da dívida estadual à União por alguns anos (algo que o STF passou a dar a quem lhe pede) e apoia novos empréstimos com garantia de ativos estaduais para pagar atrasados. Além disso, tenta induzir os estados a ajustarem receitas e despesas convencionais, algo pouco produtivo num país em recessão e orçamentos tão rígidos. Ou seja, apenas adia a solução do problema.
A saída que venho defendendo há algum tempo é equacionar (isto é, zerar) os passivos atuariais das previdências próprias, com a ajuda da reforma em tramitação, e o aporte de ativos, o que permite liberar expressivo espaço nos orçamentos, tanto para pagar atrasados como para o ente público recuperar os investimentos em infraestrutura, hoje praticamente zerados. Isso se faz criando fundos de pensão que não são públicos e nos quais é possível securitizar (ou antecipar) sobras de caixa de momentos futuros mais favoráveis para fases muito apertadas como a atual. Dessa forma, atraem-se atores relevantes como os governadores e os defensores ou responsáveis pela infraestrutura para apoiarem efetivamente a reforma, tornando possível corrigir o aleijão do PRF.
Fonte: “Correio Braziliense”, 05/02/2019