O poder dos juízes brasileiros de apreciar a constitucionalidade das leis antes de aplicá-las é tão antigo como a própria República. A exposição de motivos do decreto 848 de 1890, que instituiu a nossa Justiça Federal, já ressaltava: “A magistratura, que agora se instala no país graças ao regime republicano, não é instrumento cego, ou mero intérprete, na execução dos atos do Poder Legislativo. Antes de aplicar a lei cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção (…). Aí está posta a profunda diversidade de índole entre o Poder Judiciário, tal como instituído no regime decaído, e aquele que agora se inaugura”.
Antes que algum incauto se exaspere –e muitos já têm se manifestado sobre o “absurdo” de magistrados trabalhistas estarem resistindo a dar aplicação integral à reforma–, essa atribuição da Justiça brasileira não é uma jabuticaba, mas sim um instituto que tomamos emprestado do constitucionalismo norte-americano. Foi Marshall, no famoso caso Marbury versus Madison, de 1803, que pontificou ser da “província do Judiciário” resolver o conflito entre normas, dando prevalência àquelas de hierarquia superior; no caso, à Constituição. Se assim não fosse, maiorias parlamentares circunstanciais teriam o poder de revogar o pacto constitucional.
Nosso sistema de controle de constitucionalidade evoluiu muito desde nossa primeira Constituição republicana. A paulatina concentração de poderes nas mãos do Supremo Tribunal Federal, mesmo depois da emenda 45 –que estabeleceu as súmulas vinculantes e a repercussão geral–, não retirou dos juízes de primeira instância, no entanto, a competência para proteger os direitos fundamentais de eventuais ataques do legislador ordinário (artigo 5º., XXXV, da CF). E essa é uma cláusula pétrea da Constituição.
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Foi com base nesse direito fundamental que milhares de cidadãos brasileiros recorreram ao Judiciário contra o famigerado Plano Collor, que congelou poupanças e outros ativos financeiros da população, numa clara afronta ao direito de propriedade. Como o Supremo dormiu no ponto e não invalidou imediatamente as violações à Constituição, coube aos juízes de primeira instância fazê-lo.
Para tentar barrar a enxurrada de ações, o governo chegou a editar medida provisória que impedia a concessão de medidas cautelares contra o plano econômico de Collor. Mais uma vez o Supremo vacilou. O ministro Sepúlveda Pertence, no entanto, reconheceu que, no caso concreto, cada juiz, por intermédio do sistema difuso de controle de constitucionalidade, poderia deixar de aplicar à medida provisória caso a considerasse inconstitucional. Deu-se, assim, uma impressionante “rebelião do baixo clero judicial”, que nos salvou do arbítrio de Collor, que contava, àquele momento, com a conivência do Legislativo e a omissão do Supremo.
Não se nega a necessidade da atualização da legislação trabalhista. Há, porém, pontos juridicamente discutíveis, que serão contestados no Judiciário. A responsabilidade pela eventual insegurança jurídica advinda da judicialização da reforma não deve, no entanto, ser atribuída à atuação de magistrados comprometidos com a proteção dos direitos fundamentais, mas sim àqueles que aprovaram, de forma açodada e não consensual, uma reforma constitucionalmente tão controversa.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 25/11/2017
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