Na raiz, a crise financeira estadual se explica, basicamente, pela obrigação de pagar a salgada conta das aposentadorias dos servidores, num orçamento cujos virtuais donos resistem a assumi-la. Sem novos empréstimos e com a queda de receita por causa da recessão feroz, o quinhão que sobra para os governadores administrar – inclusive previdência – é apenas residual. Para completar, estourou a maior recessão de nossa história e a consequente desabada da receita.
Como resultado de tudo isso, surgiu uma sequência de “déficits orçamentários” elevados e crescentes nos últimos anos e o consequente acúmulo de “restos a pagar”, conforme se detecta pelos balanços. Como 2018 é o último ano dos atuais mandatos, paira no ar um cheiro de carnificina processual contra os atuais dirigentes, pois a lei exige que não se transfiram “restos” para os mandatos seguintes sem reter o numerário equivalente. Enquanto isso, a União se dá ao luxo de emitir moeda para financiar os gigantescos déficits primários acumulados na mesma fase, jogando para as futuras administrações o ônus de brigar contra a hiperinflação resultante. (Déficit primário é a insuficiência antes de pagar dívida.)
Tendo gasto seu capital político na aprovação de uma emenda que criou um teto de gasto impossível de cumprir, a não ser no curtíssimo prazo, a administração do governo que se encerra: 1) não criou qualquer diagnóstico relevante do problema estadual – a não ser cortar, cortar…; 2) trabalhou contra o Programa de Recuperação Fiscal; 3) fracassado o teto, passou a jogar todas as fichas do seu ajuste numa reforma de regras do Regime Geral, via emenda, que, além de inapropriada, não conseguiu os votos necessários no Congresso. E, finalmente, não parece ter percebido que a crise estadual e a questão previdenciária são apenas duas faces da mesma moeda. Já a crise da União tem elementos adicionais e é, portanto, mais complicada para resolver.
Poucos sabem, mas se somarmos União e Estados, a “dentada” da previdência nos orçamentos públicos terá sido de R$ 229,3 bilhões em 2017, e é de R$ 122,9 bilhões a majoritária parcela dos Estados. No INSS, mesmo sem ajustar a receita para cima para contemplar o final da maior e mais profunda recessão de nossa história, a dentada terá sido de R$ 196,3 bilhões, menos que nos regimes próprios. Pode-se ainda calcular que, sem a recessão, o déficit do INSS estaria hoje ao redor de R$ 100 bilhões, dando força à minha tese de que, ao contrário do que se tem feito, o foco do ajuste previdenciário deve recair sobre os regimes dos servidores.
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Ter o foco sobre os regimes próprios tem vantagens adicionais: uma é por ser o único jeito consistente de resolver a crise estadual, já que tentar reduzir explícita e diretamente a fatia dos donos do orçamento seria hoje um suicídio político. (Os donos são: as áreas de educação, saúde e segurança, os poderes autônomos – Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria Pública – e finalmente o serviço da dívida.) Outra coisa seria reduzir aquela fatia no contexto de uma ampla reorganização da previdência, em que o ajuste das regras é apenas uma etapa, e é possível negociar o objetivo de dar sustentabilidade aos regimes próprios com uma maior – ou alguma – contribuição patronal dos “donos”.
Ademais, o foco sobre o ajuste das regras do Regime Geral, sempre presente, leva os parlamentares à pergunta: por que reduzir direitos exatamente dos mais pobres?
Em suma, o jeito certo é criar fundos de pensão estaduais capazes de zerar o passivo atuarial, incluindo nessa conta o pagamento da dívida de curto prazo (restos a pagar) herdada do fim de 2018. Afinal, se a dentada previdenciária não fosse tão alta nos últimos anos, essa dívida de curto prazo inexistiria. Na União, a ser detalhado adiante, ter-se-iam dois fundos: um para os servidores e o outro para o Regime Geral. Depois viria a reforma de regras, também de um jeito diferente do deixado por Temer (próxima coluna).
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 08/11/2018