Em reação aos efeitos da greve dos caminhoneiros, órgãos do governo sugeriram medidas regulatórias para aumentar a concorrência no mercado de combustíveis e, assim, reduzir os preços ao consumidor. Comento aqui os riscos de uma delas, a de permitir a venda direta do etanol aos postos de revenda de combustíveis.
Melhorar a concorrência beneficia os consumidores e estimula a busca de eficiência, acarretando ganhos de produtividade e o crescimento da economia e do emprego. Mas as respectivas medidas não podem ser adotadas sem a prudente consideração das características e práticas do respectivo mercado, sob pena de gerar efeitos contrários aos pretendidos.
À primeira vista, a venda direta de etanol poderia melhorar a forma como opera o seu mercado. Segundo um dos estudos oficiais, a proibição em vigor “produz ineficiências econômicas, na medida em que impede o livre comércio e dificulta a possibilidade de concorrência que poderia existir entre o produtor de etanol e o distribuidor de combustíveis”.
Além de provocar a “dupla margem de lucro”, prossegue o estudo, a norma “gera ineficiências alocativas, além de aumentar o preço do combustível ao consumidor final”. Além disso, a medida pode “impedir fluxos logísticos mais racionais, encurtando distâncias entre produtores e consumidores, diminuindo, assim, custos de transporte, o que possui impacto direto no preço do produto”. Outro estudo citou o caso de produção de etanol próxima de postos, o que leva o etanol a percorrer distâncias bem maiores para a entrega nos terminais de uma distribuidora de combustíveis.
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Essas percepções podem mudar quando se consideram graves efeitos da venda direta, cujos custos superariam de longe seus alegados benefícios. Para começar, assinale-se que os mercados de commodities funcionam melhor e mais eficientemente com um sistema que centralize e coordene as atividades de compra e venda, gerando benefícios logísticos na sua distribuição. Essa é a razão por que a venda de inúmeros produtos não é feita habitualmente do produtor aos consumidores.
Dir-se-á que o etanol não pode ser equiparado a essas outras cadeias logísticas, mas um exame cuidadoso do seu mercado mostrará que a venda direta teria consequências negativas, a não ser em casos muito específicos e limitados.
De fato, a norma que obriga a venda do etanol a distribuidores tem sua lógica e contém inúmeras vantagens. Saliente-se, inicialmente, que os distribuidores comercializam os diferentes produtos demandados pelos postos: etanol, gasolina e diesel, cabendo-lhes ainda acrescentar aditivos para gerar diferentes tipos de combustíveis. Um caminhão tanque tem compartimentos que permitem a entrega de todos esses produtos a um único posto.
A produção de etanol é feita em 341 unidades concentradas em seis Estados (São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul). Se o mercado consumidor se limitasse a esses Estados, a venda direta poderia ser discutida, mas não é o que acontece. O etanol é vendido em cerca de 42 mil postos espalhados pelo Brasil. Dificilmente as usinas e destilarias seriam capazes de suprir todos eles com uma logística mais eficiente do que a dos distribuidores. A proximidade produtor/posto, aqui citada, acontece em reduzidíssimos casos, insuficientes para justificar uma mudança dessa magnitude.
Cerca de 20% do etanol são entregues por meio de dutos, ferrovias e navegação de cabotagem, o que tende a aumentar com os esperados investimentos em infraestrutura de transporte. Os produtores não teriam como recorrer a esses modais na mesma dimensão dos distribuidores. A venda direta pioraria a operação da logística e aumentaria o tráfego de caminhões nas já deficientes estradas do país.
A produção de etanol ocorre em apenas parte do ano. Os distribuidores se encarregam de armazená-lo, para permitir a entrega pelo país afora e garantir a normalidade do abastecimento durante todos os meses, inclusive em entressafras severas. Isso dificilmente poderia ser feito pelos produtores. Além disso, o modelo em vigor permite que as distribuidoras usem as melhores alternativas de fretes, enquanto o amplo relacionamento entre a distribuição e a revenda facilita a avaliação de riscos e a concessão de crédito aos agentes do varejo. Custa crer que os produtores pudessem exercer essas funções de forma mais eficiente.
O modelo atual tem outro papel essencial, qual seja o de assegurar a qualidade do produto vendido ao consumidor. O distribuidor tem incentivos para controlá-la, pois precisa zelar por sua imagem. Diz-se que a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) poderia exercer esse encargo, pois a ela já cabe o monitoramento da qualidade dos combustíveis. Mesmo que isso fosse possível, a inspeção seria feita por amostragem, como é usual. O maior e mais efetivo controle da qualidade é feito pela distribuidora, que recebe o produto de várias procedências e o “harmoniza”, permitindo sempre melhor rastreabilidade.
Há outros riscos da proposta de venda direta, que o espaço não permite comentar, inclusive de ordem tributária, agravando os já combalidos cofres públicos. Sua adoção poderia ainda, ao contrário do que se pensa, provocar aumento de custos de transação, piorar a operação da logística de distribuição do etanol e aumentar desnecessariamente o tráfego de caminhões nas estradas. A correspondente perda de eficiência implicaria elevação de custos para os consumidores, exatamente os que seriam supostamente os beneficiários da medida.
Tudo que funciona bem pode ser melhorado, mas buscar eficiência econômica sem sopesar seus efeitos negativos pode resultar em um jogo de soma negativa, ou seja, aquele em que todos perdem.
Fonte: “Valor Econômico”, 04/12/2018