“Odeio as viagens e os exploradores e eis que me preparo para contar as minhas explorações.” Essa paradoxal admoestação abre o livro Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss. Ela é a base dessa crônica-comentário do filme Ad Astra que, a meu ver, recusa a transcendência da “ficção científica” – essas mitológicas amparadas pela ocidentalizada esperança de encontrar respostas definitivas e sistemas perfeitos.
*
Sou viajante. Não cheguei a astronauta como o major Roy McBride (Brad Pitt), herói do filme rumo às estrelas – Ad Astra – mas fui um aventureiro ancorado nos gibis, filmes, revistas e livros cujas páginas o vento da imaginação enfuna sem cessar. Fui a todo lugar pilotado pelo Fantasma Voador, por Julio Verne e Daniel Defoe. Estive na Pasárgada de Manuel Bandeira e sofri no Inferno de Dante.
Mais de Roberto DaMatta
As ironias da sorte
Avós
Bolsas e navios
*
Celso Scofield foi meu companheiro de expedições ao universo de Brick Bradford de onde guardei uma aventura na qual existiam três incríveis gigantes imortais. Visitei também Mongo com Flash Gordon e, como todo mundo, continuo lutando contra o Imperador Ming. Nessas viagens, bastava abrir o gibi e, para voltar, fechá-lo. Cumpri muitas missões interplanetárias sem sair de Niterói.
Pela leitura que liberta, distanciava-me de uma casa onde não se ficava só e cujo corredor sombrio era uma vereda para as “almas do outro mundo” que visitavam Titia para requerer, como se faz junto ao STF, rezas. Felizmente havia a música do piano de mamãe…
Enquanto navegava pelo espaço e na África racista de Tarzan, fiz jornadas reais entre Niterói, Juiz de Fora e São João Nepomuceno, tendo como pano de fundo uma Manaus com suas tartarugadas e uma Maceió com tapiocas. Cresci com e contra esses trajetos.
*
Criado num catolicismo democrático no qual santos e espíritos se revezavam, sempre fui fascinado pela alteridade que anima a mitologia da ficção científica. Tanto que o primeiro trabalho que escrevi à máquina, aos 14 anos, foi uma “crítica” do filme Destino à Lua, de 1950. No ano seguinte vi o clássico esquecido de Robert Wise, O Dia em Que a Terra Parou, revelando como um sacrossanto alienígena “desce” à Terra para nos salvar da autodestruição. É o inverso do Ad Astra. Em ambos há perigo, mas no caso da película de James Gray, um astronauta “sobe” aos confins do sistema solar para salvar a Terra ameaçada por seu pai. Um outro onipotente e contido superastronauta (xamã e símbolo divino) com a missão de saber se haveria vida inteligente fora do nosso sistema solar.
Nessas histórias, repete-se uma conhecida especulação encontrada pelos antropólogos – esses astronautas que saíram de suas humanidades e visitaram outros mundos – em todo lugar. Afinal, somos ou não monitorados por seres superiores e moralmente justos? Ou tudo se faz ao acaso?
No filme de Wise (tal como no superclássico 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, de 1968), temos uma difusão positiva. Algo extramundano – um disco voador acompanhado de um anjo-robô capaz de pulverizar armas de guerra tenta salvar o mundo. Em Ad Astra, um homem vai a Netuno para encontrar seu pai depois de uma mensagem emocionada. Salvam-se todos, menos o pai que é, finalmente, liberado pelo filho, depois de deixá-lo com uma mensagem amarga: estamos sós. Ademais, somos capazes de criar e destruir, tal como os seres divinos que imaginamos. Por trás do brilho da cinematografia e dos foguetes fálicos (a contrastar com os arredondados discos voadores de outrora), a ausência cabal de resposta é o que todos aprendemos com as viagens e suas decepções. Pois quanto mais longe vamos, mais somos dragados para perto das profundezas de nossas vidas.
O filme termina com o astronauta se liberando (e se libertando) de um pai onipotente. A cena só se compara com o retorno do herói quando ele, calma e introspectivamente, promete viver e amar, pois em nenhum dos maravilhosos planetas descobertos havia a realidade implícita do viver que é amar.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 9/10/2019