Todos temos pais e, conhecendo ou não, avós. Ter consciência dos pais dos nossos pais é um dado concreto e real que independe das circunstâncias ou de gosto. Aliás, esses pais dos nossos pais são irremovíveis (mesmo sem deles termos memória) porque todos nós, viventes, nascemos de outros viventes num ato cheio de fervor e esperança.
Quando falo em homem e mulher, não me refiro à importante discussão centrada no gênero. Refiro-me ao sentido arcaico de que para criar um novo ser humano é preciso uma substância masculina – um esquecido espermatozoide e um igualmente olvidado óvulo que é por ele devidamente recebido. Nesse encontro no qual se dá uma fundação mútua, há uma fusão. Um ato microscópico, invisível a olho nu, mas densamente revolucionário. Dois criam o um e ambos viram uma outra coisa – um feto ou embrião – que, se tudo correr como manda o figurino biocultural, vai surgir um bebezinho que, ao longo dos anos, se torna um idiota como você e eu.
*
Mais de Roberto DaMatta
Bolsas e navios
Vendo de longe e de fora
Sobre a má sorte amazonense
Somos parte de uma minimota linhagem biocultural. E isso não é uma questão de gosto, mas de realidade. Tudo isso pode ser feito num laboratório, mas ele é muito complicado e, acima de tudo, caro. Aliás, mesmo em casos extraordinários, quem vai preferir (mesmo podendo) ter um descendente de proveta se o amor derramado pelo masculino e englobado pelo feminino é o laço primordial que nos liga uns aos outros sem igrejas, partidos, bancos, escolas, ideologias e até mesmo países?
Não seria justamente essa fragilidade biocultural que nos leva à família, à casa, ao “parentesco” e à lealdade infinita pelos rebentos que fabricamos apenas com a nossa afeição? Será que um bebê de proveta seria preferível aos que, ansiosos, vimos crescer no ventre materno e, depois, no colo e no peito farto da mãe – esse ser minúsculo cuja fragilidade nos toca tanto quanto a sua dependência, porque ela nos remete a nossa própria (e permanente) carência?
Nascemos de nossos pais que, por sua vez, nasceram de nossos avós.
*
A maioria lembra mais dos pais do que dos pais dos seus pais. Mas existem muitos casos que a memória da avó ou do avô é muito importante. Em muitos casos, eles substituíram ou complementaram os pais que, Deus sabe como, faltaram em algum momento decisivo.
Quem perdeu filhos conhece esse absurdo desfiladeiro sem montanha, esse rio sem água, esse céu escuro. Quando isso ocorre, sente-se uma dor com a dureza de aço, pois enterrar um filho é uma forma de morrer. E se o filho morto deixou filhos se abre uma tarefa difícil, pois não é fácil transformar avós em pais.
Como há um espaço entre as gerações, nossos laços com os pais dos pais são mais serenos menos autoritários e mais amistosos. Tios e avós são a salvação da família porque servem como afins. E a afinidade é o amor desobrigado que leva ao casamento e, no caso, a amizade liberta dos tabus que impedem certas conversas com os pais.
*
Eu tive apenas dois avós porque dois viúvos com filhos se casaram e tiveram outros filhos. Mas o único filho do viúvo casou-se com a única filha da viúva.
Fiquei intrigado quando descobri que meus amigos tinham quatro avós. Tempos depois atinei que, no caso do meus pais, minha família perdeu os esplendores do lucro das trocas matrimoniais. Mas, como contrapeso, ganhou em intensidade amorosa e neurótica.
Talvez por isso, meus dois avós foram muito importantes. Do avô eu lembro de sua gentileza infalível. Um dia quase chorou porque não pôde levantar-se para saudar a viúva do seu filho mais querido. Ademais soube criar com isenção o filho do primeiro casamento e os do segundo. Amava minha avó e declarou seu amor até morrer. Fumava charutos aos domingos e não gostava de padres.
Já com minha avó que, jovem e grávida de minha mãe, viveu o assassinato do primeiro marido, aprendi que a vida é mais jogo do que projeto. Quem dela espera pouco – ensinou-me – recebe muito.
Sem o seu – persevere! – não estaria nessas páginas. Eis o caso definidor de sua personalidade. Na véspera do meu casamento, ela me perguntou, cara a cara, se eu “que era um rapaz sossegado e metido nos livros, sabia mesmo satisfazer uma mulher”. Inseguro, disse que sim e fui em frente. Mas a questão crucial – será que você sabe mesmo satisfazer uma mulher – se fosse feita com mais frequência promoveria uniões matrimoniais muito mais felizes.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 25/9/2019