No lado direito de uma das minhas estantes, apoiado nas lombadas das obras completas de Lima Barreto e outros livros que sustentam minha vida, minhas dores e minhas esperanças, há uma moldura antiga, com encraves de metal prateado, sustentando um retrato desse vosso cronista aos sete meses de vida.
Tirada obviamente num estúdio, a foto mostra uma criança cabeçuda sentada numa mesa com uma bola entre as pernas dando um olhar tristonho e um tanto surpreso para a câmara. No verso, lê-se na bela escrita de minha mãe, Maria de Lourdes (Lulita), o seguinte: “Robertinho aos sete mezes”, conforme se escrevia naqueles tampos. Aos sete meses eu estava sentado e assustado; hoje, com 83 anos eu estou firme e, apesar das pancadas tomadas desse 1937 da foto, e esse nosso um tanto não fotografado e confuso 2019, continuo assustado.
E, no entanto, o idoso de hoje e a criancinha de ontem têm em comum a inocência. Inocência paulatinamente perdida e recorrentemente recuperada ao longo da vida. Inocência que eu planejei e fui obrigado a perder lendo livros proibidos e tendo desejos inconfessáveis (os famosos pecados mortais), mas que jamais foi soterrada porque, enquanto vivermos, somos inocentes e só conseguimos existir com alguma dose de inocência. O pecado não é o oposto da inocência, que engloba tanto o mais salafrário pecador quanto o mais sabido dos malandrados.
Num sentido preciso, perdemos uma camada da inocência somente para descobrir outras formas desse desconhecer, desse querer ser enganado pela multidão, dos nossos desejos. Desse atordoar-se com o ardor e a fúria e desse não saber o que todos sabem e que, em certos momentos de nossa vida, revelam sem nenhuma cerimônia ou aviso. A primeira perda da inocência, dizem os freudianos com razão, é quando saímos do ventre agasalhador de nossas mães e, em seguida perdemos também o seu colo tenro e seguro: a fonte de nossa nutrição. O que vem a seguir é uma série de reprimendas e avisos com os quais formamos nossa consciência e que começam com uma contínua perda de nossa inocência porque não sabíamos o quanto o viver é perigoso, regrado, editado e corrigido por tantas pessoas e instituições.
Não é, pois, por acaso que o extraordinário escritor inglês Graham Greene disse que “a inocência é um tipo de insanidade” enquanto eu, modestamente, declaro que ela é continente e moldura (como na minha foto de criança) da vida na qual entramos sem convite e da qual, um dia, inocentemente saímos.
Deus, diz um amigo querido, nos programou para a inexorabilidade da morte, mas, sendo misericordioso, nos deixou inocentes do dia em que vamos morrer e do modo como isso acontecerá. É justamente essa inocência crucial que agencia nossas vidas. Esse perpétuo querer experimentar, descobrir, arriscar e a sofrer e gozar; pois somos todos instigados pela força da inocência, mesmo quando estamos no meio de um vendaval amoroso ou patológico. Ou, do lado inverso, odiamos e cometemos um crime. Quando alguém aponta as consequências, descobrimos, sempre a contragosto, uma imensa inocência que, nesse caso, vira responsabilidade.
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Dizem que, numa certa tribo, havia um homem que não tinha inocência. Não podia ser enganado quando comerciava ou escutava um sermão ou aula. Nenhum livro lhe trazia alguma novidade e nenhuma mulher lhe despertava amor porque, não sendo inocente, ele não tinha aquele pendor fundamental para apaixonar-se, pois a paixão e o amor, a solidariedade e a fraternidade, a confiança e a liberdade nascem precisamente da inocência.
Não há mudança sem uma dose de inocência nem sofrimento ou decepção sem ela. O engano indolor da comédia ou a perturbadora dor das tragédias só acontecem quando se é inocente e o fim da inocência revela o quanto fomos por ela enganados. Os poderosos “Deus meu, como é que eu não descobri isso antes?” e do “como não fui capaz de perceber a desfaçatez e a hipocrisia do golpe!” só existem porque se o conhecimento é infinito, a inocência se mistura com a ignorância trivial do não saber e do confiar. Nada na vida se apresenta como fato, tudo se mistura com fantasia e desejo. Mas a inocência nos leva de volta a atos e fatos…
“The trust of the innocent is the liar’s most useful tool.” Stephen King
“We each begin in innocence. We all become guilty.” Leonard F. Peltier
“The worst of us is not without innocence, although buried deeply it might be.” Walt Disney
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 4/12/2019