Bebíamos o terceiro ou quarto uísque quando surgiu no infinito horizonte dos nossos copos vazios uma questão burguesa: afinal de contas, o que nos havia tornado humanos? Teria sido a alma dada por Deus essa inventora da consciência e da linguagem articulada — ou o tabu do incesto? Teria sido a proibição de comermos a nós mesmos, como tendem a fazer a democracia igualitária e o globalismo desenfreado?
Todos falaram, mas eu fiquei com aquele que soltou o seguinte: “Somos humanos porque temos o condicionante virtual, o ‘se’ da frustração e do arrependimento. Ah! Se eu soubesse, ou pudesse…”
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Se eu soubesse o que hoje sei, eu não sei se estaria escrevendo estas linhas… Se eu soubesse que o “se eu soubesse” é algo recorrente — pois sempre pensamos saber mais do que sabemos —, eu não teria ficado tão magoado com meu pai… Se eu soubesse que a democracia americana ia dar em Trump, disse um tal de Alexis Charles-Henri-Maurice Clérel de Tocqueville, eu teria refeito o meu livro “Democracia na América”… Se eu soubesse que insistir em pegar na mão dela ia me custar o emprego, eu teria ficado fiel ao meu inútil voto de castidade… Se eu soubesse que tudo o que eu fiz e ainda vou fazer vai ser fatalmente esquecido, eu teria pensado mais em escrever menos… Se eu soubesse o resultado da Mega-Sena, eu (diz um lado meu) estaria longe daqui… Se eu soubesse que o tempo realmente passa, eu teria terminado o livro que jamais vou escrever… Se eu soubesse que roubar era sinônimo de “cuidar do povo”, eu teria me suicidado politicamente… Se eu soubesse que a descoberta do planeta como um todo — o planeta visto de fora para dentro — ia me dar a certeza de que estamos matando o mundo, eu não seria otimista… Se eu soubesse que ser professor seria viver numa luta decepcionante contra a indiferença do saber em toda a parte, mas sobretudo no Brasil, eu teria — mesmo assim — sido professor… Se eu soubesse que o meu medo do escuro ia estar sempre ao meu lado, eu teria acendido a luz… Se eu soubesse que ia construir uma tribo, eu jamais saberia como a leveza do papel de avô compensa amplamente o papel pesado de pai… Se eu soubesse que iria ser vítima das intrigas humanas que, por sua vez, são o resultado não previsto das intrigas que os intrigantes realizam nas suas próprias cabeças, eu teria vivido com serenidade as calúnias assacadas contra mim… Se eu soubesse que, mesmo sendo o filho mais velho, eu poderia ter mais latitude para errar, burlar, brincar e pecar, eu talvez tivesse sido um artista — medíocre, sem dúvida — um ser mais alinhado com os encontros decisivos entre a força da vida e o silêncio dos túmulos… Se eu soubesse Latim, Francês e Matemática como meus professores gostariam que eu aprendesse, eu seria engenheiro ou militar… Se eu soubesse que a ambição humana é tão ou mais poderosa que os protocolos, eu estaria menos preocupado com um mundo que exige muito menos de mim do que eu dele… Se eu soubesse de memória tudo o que ouvi dos meus professores, eu estaria num hospício… Se eu soubesse que não saber é uma condição da vida, eu não teria consultado aquela cartomante famosa que tinha como clientes diplomatas, altos funcionários, frades e materialistas… Se eu soubesse que despertava tanta inveja, meu sentimento de culpa caberia num dedal… Se eu soubesse que o mapa social do Brasil estava traçado antes do meu nascimento, eu não teria me esforçado tanto — teria me esforçado muito mais… Se soubesse tudo, eu não teria que aprender nada… E se eu não soubesse nada, como foi o caso, eu não ficaria tão decepcionado em saber tão pouco… Se eu soubesse puxar o saco dos poderosos, eu teria ido muito mais longe… Se eu soubesse que ele ia morrer subitamente, eu lhe diria o quanto eu o amava todo os dias… Se meus pais estivessem vivos, eu iria perguntar tudo sobre a vida deles… Se eu soubesse que o passado jamais volta, exceto pelos bons momentos do presente, eu não estaria firme neste pedaço de jornal…
Fonte: “Globo”, 17/01/2018
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