“Vergonha é uma palavra que, há anos, os espanhóis eliminaram de seu vocabulário.” “Os espanhóis só sabem espoliar.” “Se continuamos aqui mais alguns anos, corremos o risco de terminar tão loucos quanto os próprios espanhóis.” “Mais que tudo, o que surpreende é o tom, a má educação, a ofensa espanhola: sensação de imundície.”
Quim Torra, eleito governador regional (president) pela estreita maioria independentista no Parlamento da Catalunha, apagou centenas de tuítes como esses de sua conta —mas eles já haviam sido copiados e traduzidos para o espanhol. Na Catalunha, como em outros lugares da Europa, a direita é a nova esquerda.
Torra é um nativista, um xenófobo antiespanhol, um supremacista catalão. Sua eleição obedeceu ao comando direto de Carles Puigdemont, o president destituído, exilado em Berlim. Contudo, a maioria da bancada independentista é formada por dois partidos de esquerda: a ERC, moderada, e a CUP, radical. Sem o apoio deles, Torra não teria sido alçado à chefia do governo regional. Mussolini moveu-se da extrema-esquerda à extrema-direita para inventar o fascismo. Um século depois, na abrangente moldura do nacionalismo, a esquerda catalã identifica-se com um semifascista.
Os tuítes são o de menos. Artigos de Torra publicados por obscuras revistas separatistas desvendam suas inclinações ideológicas. Num, classifica a Espanha como “um país exportador de miséria, material e espiritualmente falando”.
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Noutro, recomenda “um psiquiatra” para curar “o torturado cérebro espanhol”. Um terceiro qualifica os catalães que têm no espanhol sua língua habitual como “bestas com rosto humano”, “víboras” e “hienas”.
A tecla perene de Torra é o essencialismo identitário. Um artigo explica que “pátria é um estado de espírito” e, ainda, que “se somos catalães, não podemos ser outra coisa”. A obsessão pelo idioma sintetiza-se em outro texto, que faz da língua a “alma da pátria”. A pulsão romântica evidencia-se na passagem: “Que deterioração. Sais a rua e nada indica que aquilo seja a rua de teus pais e de teus avôs: o castelhano avança implacável, voraz.” Pouco mais de metade dos eleitores catalães rejeitaram os partidos independentistas. “Aqui, não cabe todo mundo”, escreveu o novo presidente.
Estat Català é um partido ultranacionalista, o equivalente catalão da Falange franquista, que operou na primeira metade da década de 1930, organizando milícias de tipo fascista e negociando acordos com o regime de Mussolini. Num artigo de 2014, Torra celebrou seus líderes como “pioneiros da independência”, agradecendo-lhes a “belíssima lição” de “tantos anos de luta solitária”. O president eleito pela esquerda catalã situa-se no campo dos partidos xenófobos da direita europeia.
O mito da “nação do sangue”, ancestral e pura, impulsiona o separatismo catalão. Nas palavras de Torra: “Corre-se o risco de que a nação se dissolva como açúcar em copo de leite, espremida entre a avalanche imigratória, a monstruosa espoliação fiscal e uma globalização que só trata com respeito a quem pertence à ordem mundial: os Estados”. A “espoliação fiscal” é referência à Espanha; a “globalização”, à União Europeia; a “avalanche imigratória”, às ondas de trabalhadores andaluzes que se transferiram para a Catalunha desde a década de 1960 e —horror! — falam espanhol.
A encruzilhada esquerda/direita não desapareceu. Hoje, porém, ela se redefine à sombra da cisão cosmopolitismo/nacionalismo. A esquerda catalã escolheu seu lado.
O Podemos, partido esquerdista espanhol que figura como modelo para o PSOL, deixou-se seduzir pelos nacionalistas catalães, apoiando o plebiscito ilegal de independência. Agora, um tanto tarde, acordou e classificou os textos de Torra como “racistas”. Não parece, mas o Brasil faz parte do mundo. A esquerda brasileira deve, cedo ou tarde, escolher um lado.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 19/05/2018