A Oração de São Francisco é um texto repleto de boas intenções. Sugere, por exemplo, que onde houver ódio se leve o amor, e que a alegria seja levada aonde houver tristeza. O historiador francês Christian Renoux, entretanto, jura que essa mensagem de paz e amor nada tem a ver com o santo. De qualquer forma, ainda que possa ser um erro atribuí-la a São Francisco de Assis, ele com certeza ficaria honrado em assiná-la. Neste artigo, portanto, não focarei na autoria, seguindo o próprio ensinamento da oração: “Onde houver discórdia, que se leve a união”.
Há uma citação na prece que sensibiliza especialmente os políticos: “É dando que se recebe”. Lembrei-me da frase na votação da reforma da Previdência, diga-se de passagem, extremamente necessária para o reequilíbrio das contas públicas. No ano passado, o déficit entre o que o país arrecadou com contribuições e o que pagou com benefícios foi de quase R$ 270 bilhões.
Apesar da relevância do tema, na hora “H” São Francisco foi invocado. Nada muito diferente do que aconteceu em governos anteriores. Há diversas tratativas para a formação de maioria sobre determinado assunto, mas uma delas é “franciscana”, às avessas: é dando dinheiro para as emendas parlamentares que se recebem votos no Plenário.
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As emendas parlamentares são alocações de gastos no Orçamento da União, por deputados e senadores, os quais costumam privilegiar com pequenas obras os seus redutos eleitorais. Desde a Constituição Federal de 1988, há a possibilidade de apresentação de emendas individuais ao Orçamento. Como durante vários anos o Executivo quitava apenas parte dessas propostas dos políticos — e geralmente favorecia a base parlamentar de apoio em detrimento da oposição —, em 2015 a Emenda Constitucional 86 tornou obrigatória a execução dessas proposições parlamentares, dentro de determinados parâmetros. As bancadas estaduais também têm parte das suas emendas asseguradas pela Constituição. Assim sendo, não há ilegalidade na execução dessas emendas. O que os governos fazem é liberá-las, ao longo do ano, em doses estratégicas, em volume maior quando é interessante afagar o Congresso.
Na votação da reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara dos Deputados, não foi diferente. Neste mês de julho, apenas nos primeiros cinco dias foram empenhados (reserva orçamentária para posterior pagamento) R$ 2,6 bilhões, volume maior do que o montante liberado em todo o primeiro semestre (R$ 1,8 bilhão). Comparados os valores mensais desde janeiro de 2016, os empenhos dos cinco primeiros dias deste mês colocam julho de 2019 em quarto lugar dentre 43 meses!
Para saciar as Excelências, a conta pode aumentar. Com a ampla renovação da Câmara dos Deputados nas eleições passadas, mais da metade dos parlamentares iniciou o mandato neste ano e não teve a oportunidade de fazer emendas ao Orçamento de 2019, aprovado no fim de 2018. Assim, alguns novatos estão reivindicando o seu naco. Os parlamentares antigos, por sua vez, querem mais do que constitucionalmente o governo está obrigado a liberar. Até a aprovação final, as negociações “franciscanas” devem continuar.
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Logo após a votação da última quarta-feira, coincidentemente, o ritmo arrefeceu. Até sexta-feira passada foram empenhados R$ 2,7 bilhões, valor não muito maior do que o observado na enxurrada de emendas empenhadas nos cinco primeiros dias de julho.
Essa evidente barganha apequena o Executivo e o Congresso. Em um mundo ideal deveria haver um duplo constrangimento: do Executivo, ao liberar recursos, e dos parlamentares ao aceitarem que as suas emendas sejam atendidas às vésperas de votação importante. Mas o mundo político está muito distante do mundo ideal…
Voltando à Oração de São Francisco, relevemos, por ora, a relação promíscua entre Executivo e Legislativo. O momento é de comemorar a parcial aprovação da reforma que trará inúmeros benefícios para a economia brasileira e para o país. Esqueçamos os deputados que praticaram, às avessas, o é dando que se recebe. Afinal, é perdoando que se é perdoado…
Fonte: “O Globo”, 16/07/2019