O fiasco do cacique Renan Calheiros (MDB-AL) na eleição para a presidência do Senado Federal e, em consequência, do Congresso Nacional afasta o MDB do centro do palco político republicano. E clama por uma imediata readequação da elite dirigente do País ao novo protagonismo de sua excelência, o cidadão, como definia um ilustre varão da História do partido, Ulysses Guimarães. A forma como essa troca de guarda se deu demanda, por outro lado, urgente revisão de conduta de outro ocupante da Praça dos Três Poderes, o Judiciário.
A democracia, tal como a entende a cidadania, ao contrário da retórica e das atitudes de seus soit-disant representantes, exige completa transparência e rigoroso cumprimento de um mandamento institucional que cabe como uma luva na melhor definição que se conhece do menos ruim dos sistemas de governo: o “império da lei”. Assim sendo, urge asseverar que o abandono da “tradição” de a maior bancada ocupar sempre a presidência da Mesa não é suficiente para atender ao cumprimento do mais pétreo de todos os ditames constitucionais, o de que todo o poder emana do povo e em seu nome tem de ser exercido. Não basta compreender isso, urge construir imediatamente um protocolo de práticas que o cumpra sem vacilos nem hesitação alguma.
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O mais urgente deles será pôr imediato fim à condescendência com que são tratados graves atentados ao decoro cometidos por altas autoridades cujo comportamento não condiz com as exigências de seu cargo, nem mesmo com pudor e compostura. O maior vexame do processo eleitoral na casa dos “seniores” (os mais velhos) foi protagonizado pela despudorada reincidente Kátia Abreu (PDT-TO), que em cumplicidade com o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, e o aliado Renan Calheiros rasurou a Constituição para impedir que Dilma Rousseff fosse punida com perda do direito de ocupar cargo público, o que depois lhe seria negado pelo prudente povo mineiro.
Será inútil, mas nunca inócuo, lembrar que, se os protagonistas dessa desobediência desavergonhada à letra constitucional tivessem sido punidos com o devido rigor, dois deles não teriam atuado na definitiva desmoralização da instituição republicana que voltaram a desonrar na noite da sexta 1.º de fevereiro e no sábado 2. Para evitar a derrota de seu candidato, a senadora agiu como se batesse carteira, ao furtar a pasta com a documentação que atestava uma votação avassaladora em que 50 senadores contra 2 decidiram pela eleição direta, adotando liminar dada pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello – e rasgada posteriormente pelo colega Dias Toffoli, que também autocraticamente a renegou.
A evidente interferência destoante da independência e autonomia dos Poderes (apud Montesquieu) só não terá como se repetir no futuro se imediatamente os senadores que ousaram derrotar Renan, que não é rei, não, adaptarem o regimento da Casa, de 1970, em pleno regime militar, a normas condizentes com os novos tempos. Estes novos tempos, manifestados na eleição de Jair Bolsonaro, interrompendo o rodízio PSDB-PT-MDB na Presidência da República, provocaram a escolha de mais um membro da plebe parlamentar contra o “sempre novo” barão de Murici, na pessoa do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), de um partido pequeno e um Estado, idem. Se o presidente teve quase 58 milhões de votos em outubro contra Lula e o PT, o amapaense, eleito pela unidade da Federação que havia no passado acolhido o conde de Curupu, José Sarney, conseguiu os 42 votos necessários para a vitória em primeiro turno por encarnar o “Renão”, hashtag de enorme sucesso nos últimos dias. Convém ainda destacar que tanto na eleição do chefe do Executivo quanto na escolha do principal mandatário do Legislativo teve importância capital a participação dos cidadãos nas redes sociais.
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No segundo caso, o derrotado teve duas vitórias de Pirro, o rei grego que, em Apúlia, venceu os romanos, mas perdeu o exército e, por isso, a guerra. O triunfo na bancada do MDB sobre Simone Tebet (MS) por 7 a 5 já era um prenúncio de que não venceria a disputa, como proclamavam seus lacaios. Pior ainda, contudo, foi a vitória do pleito direto por 50 a 2 na noite de sexta, o que motivou Kátia Abreu a roubar a pasta e ameaçar furtar a própria urna num tuíte camicase.
De nada lhe serviu a indicação exógena de seu aliado José Maranhão (MDB-PB) para presidir a sessão decisiva por ser o “mais idoso”, segundo Toffoli. Constituinte, deputado e senador desde sempre, o paraibano teve atuação desastrada, mas em nada ajudou o camarada.
No plenário de 81 votantes, o funcionário encarregado de providenciar as cédulas imprimiu 82. E algum varão de Plutarco pelo avesso, da república da maracutaia, dobrou duas e as pôs na urna diante de toda a Mesa e dos fiscais dos seis candidatos, que não perceberam a fraude. Um deles, a juíza Selma Arruda (PSL-MT), arvorou-se em perita sem ter sido capaz de pilhar o flagrante delito nem de impedir duas decisões absurdas de Maranhão. A primeira foi ler as duas cédulas fraudadas, rasgá-las e guardar no bolso do paletó, se não destruindo, no mínimo interferindo na principal prova do crime. A outra, mandar picotar os votos legítimos quando o correto seria preservá-los, lacrar a urna e só entregá-la a uma autoridade policial ou judiciária.
Depois de ter incluído o dito Supremo na pantomima, Dias Toffoli não terá moral alguma para voltar a interferir na decisão dos senadores, pois se o fizer terminará por desmoralizar ainda mais o Poder que preside. Atenuante de Maranhão dependerá de ter preservado a cédula rasgada e mantido as picotadas para exame pericial. Ao Senado caberá adaptar-se aos novos tempos e corrigir todas as lambanças, punindo todos os protagonistas após processo transparente e rigoroso. É punir e mudar ou cair no descrédito e na galhofa universal.
Fonte: “Estadão”, 06/02/2019